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O voto viciado do parlamentar coloca a democracia em risco

Autor: Fernando Roberto Campos Vieira dos Santos (aluno de graduação da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie)

Resumo
Em meio aos escândalos na política nacional acerca da comercialização de votos de parlamentares, surge uma nova forma de inconstitucionalidade que põe em risco a democracia e a soberania popular.

Sumário

1. Introdução
2. As formas de inconstitucionalidades até então conhecidas
3. Surge uma nova forma de inconstitucionalidade: “inconstitucionalidade por vício na essência do voto”
4. Soberania popular e democracia
6. O mandato político representativo
7. Características do voto
8. Conclusão
Bibliografia

1. Introdução

Seguindo a tendência histórica desde a proclamação da república, em 1889, o constituinte originário manteve, mediante declaração, no artigo 1º da CF/88, a forma federativa do estado brasileiro. A federação é formada pela união de coletividades regionais chamados de Estados federados, Estados-membros ou Estados. No caso particular da República Federativa do Brasil, os municípios e o Distrito Federal também compõem a federação.

No Estado brasileiro, a União é a entidade federal formada pela reunião dos Estados-membros, sendo aquela a única pessoa jurídica de Direito Público interno com capacidade de exercer, em nome do Estado brasileiro, as prerrogativas da soberania, considerado o poder supremo consistente na capacidade de autodeterminação. Os Estados-membros, por sua vez, são autônomos, caracterizando-se como um governo próprio dentro do círculo de competências traçadas pela Constituição Federal.

O poder constituinte originário estabeleceu, também, princípios, valores conquistados ao longo dos anos pela sociedade e procedimentos que devem ser seguidos tanto na elaboração de emendas à Constituição Federal, quanto na elaboração de leis e atos normativos, para que o Estado Democrático de Direito, os valores do povo, não sejam ameaçados. A desobediência destes preceitos constitucionais torna a emenda à constituição, lei ou ato normativo inconstitucionais, por serem diversos dos valores do povo consubstanciados na Carta Magna. E, uma vez declarados inconstitucionais, por meio de um processo próprio, tornam-se nulos, sendo, conseqüentemente, extirpados do ordenamento jurídico, podendo os efeitos da decisão ser ou não ex tunc.

2. As formas de inconstitucionalidades até então conhecidas

A Constituição Federal confere à União, Estados, Municípios e Distrito Federal poderes e competências governamentais, como, também, limita-os por meio de regras implícitas ou explícitas. Uma emenda constitucional, lei ou ato normativo que desrespeite normas ou princípios constitucionais acarreta em inconstitucionalidade, que pode ocorrer em seu aspecto material e/ou formal, a qual se subdivide em inconstitucionalidade formal objetiva e formal subjetiva.

A inconstitucionalidade formal surge quando há um desrespeito aos procedimentos ou formalidades previstos na Constituição Federal. Neste caso, é conhecida como inconstitucionalidade formal objetiva. Podemos citar como exemplo, uma lei complementar, que exija maioria absoluta para a sua aprovação, conforme artigo 69 da Constituição Federal, porém é votada e aprovada em quorum de maioria simples.

Será formal subjetiva quando a norma tenha sido elaborada por autoridade incompetente. Esta forma de inconstitucionalidade pode ocorrer, por exemplo, quando não se observa o artigo 61, § 1º, I, da Constituição Federal. Por este artigo, a iniciativa de lei que fixe ou modifique os efetivos das forças armadas compete privativamente ao Presidente da República. Portanto, se uma lei que trate deste assunto for elaborada por outra autoridade, haverá inconstitucionalidade formal subjetiva.

Por outro lado, quando lei ou ato normativo contrariar princípio ou preceito constitucional, estaremos diante de inconstitucionalidade material. Por exemplo, uma lei discricionária que afronta o princípio da igualdade contido na Constituição.

Nossa Carta Magna prevê, também, outro tipo de inconstitucionalidade. No entanto, ao contrário da inconstitucionalidade formal e material, que ocorrem por meio de uma ação do poder público, esta modalidade ocorre pela omissão do poder legislativo ou administrativo em elaborar uma norma necessária para que normas constitucionais se tornem efetivas, conforme previsto nos artigos 102, I, “a”, e III, “a”, “b” e ”c”, e artigo 103 e seus §§ 1º a 3º da Constituição Federal.

3. Surge uma nova forma de inconstitucionalidade: “inconstitucionalidade por vício na essência do voto”

Uma nova forma de inconstitucionalidade por ação pode ser percebida. Conforme tem sido amplamente divulgado pela imprensa, alguns parlamentares do Congresso Nacional estão envolvidos em escândalos nos chamados casos do “mensalão”, do “mensalinho”, entre outros. Tais irregularidades consistem em receber pagamento para votar projeto em determinado sentido, o que contraria frontalmente os objetivos de quem nomeou o parlamentar para o representar no governo.

O recebimento, pelo parlamentar, de vantagens em troca de seu voto fere a essência do voto, conseqüentemente, a representatividade popular (artigo 1º, parágrafo único, da Constituição Federal), colocando em risco, portanto, a soberania popular. Por esta razão, toda e qualquer norma aprovada por meio de votos viciados é inconstitucional. A norma não é legítima, pois não reflete a soberania popular, não corresponde à idéia de democracia que a sociedade conquistou duramente ao longo da história.

4. Soberania popular e democracia

A soberania é, nas palavras de José Afonso da Silva, o “poder supremo consistente na capacidade de autodeterminação”. O constituinte originário ao afirmar, por meio do parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal, que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente” declara que o Estado brasileiro rege-se pelo princípio da soberania popular, ou seja, o povo é o detentor deste “poder supremo”, sendo capaz de se autodeterminar. No entanto, este poder só é possível nos regimes democráticos.

A soberania popular e a democracia coexistem, pois a democracia é um meio e instrumento que possibilita a exteriorização de valores da sociedade, que, ao longo da história, foi se traduzindo nos princípios fundamentais. Observa-se, portanto, que a democracia vai além de um conceito político abstrato e estático, ela reflete um processo de conquistas dos direitos fundamentais que ocorreram ao longo dos séculos.

Para o exercício da democracia, exige-se a participação popular direta (artigo 1º, parágrafo único, parte final, da CF) e indireta (artigo 1º, parágrafo único, primeira parte, da CF) do povo no poder. Extrai-se daí a regra de que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de sua participação, direta ou indireta, nas decisões do Estado.

A participação direta da sociedade ocorre quando o cidadão participa, sem mediação de representantes, da formação dos atos do Estado. A Constituição Federal de 1988, em seus artigos 1º, parágrafo único, parte final, c/c o artigo 14 e incisos, estabeleceu que a participação popular direta será exercida por meio de plebiscito, referendo e iniciativa popular.

O povo também exerce sua soberania por meio da participação indireta, escolhendo representantes que atuarão em prol dos interesses da sociedade. A escolha é feita por meio do “sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos” (artigo 14 da CF), devendo esta seleção ocorrer periodicamente e respeitar o processo eleitoral.

O exercício da democracia não se resume apenas na escolha de autoridades dos poderes Executivo e Legislativo por meio de eleições periódicas. É, também, realizar um ato de decisão política ao declarar preferências. Denota adesão a ideologias e a uma política governamental, confere legitimidade às autoridades governamentais escolhidas, concretizando a representatividade popular, elemento fundamental para o exercício da soberania popular.

6. O mandato político representativo

A eleição outorga ao candidato eleito o mandato político representativo, componente essencial da democracia representativa. O representante, de acordo com a teoria da representação política, não fica vinculado aos cidadãos que o elegeram, pois o mandato representativo não é uma relação contratual, sendo, portanto, geral, livre e, em princípio, irrevogável.

O caráter geral decorre do fato de o representante, depois de eleito, representar todas os habitantes do território nacional. O mandato representativo também é livre, pois o representante não fica vinculado às pessoas que o elegeram, não recebe, portanto, instruções destes para o exercício de seu mandato. A vinculação do representante a seus eleitores é tão somente moral, pois, o eleito passa a representar toda uma nação. A própria Constituição garante ao representante a autonomia da vontade para suas decisões. Por último, é irrevogável, porque uma vez eleito, permanecerá no cargo até as eleições subseqüentes, exceto se incorrer em alguma das hipóteses de perda do mandato, previstas no artigo 55 da Constituição Federal.

7. Características do voto

O voto é a legítima expressão da soberania popular, conforme Meirelles Teixeira “deve revestir-se de eficácia política e ainda que represente a vontade real do eleitor, vale dizer, que seja cercado de tais garantias que possa dizer-se sincero e autêntico”, porque, se “um voto lançado na urna não repercutir, potencialmente embora, de algum modo, na formação dos poderes e dos órgãos do Estado, e, daí, no próprio governo da coisa pública, será um voto ineficaz”, e caso não for “autêntica expressão da vontade, do sentir, do consentimento de quem o dá, falseada estará, em seu própria origem, a vontade da nação”. Os sistemas eleitorais democráticos buscam, por meios da personalidade e da liberdade do voto, atribuir eficácia, sinceridade e autenticidade essenciais ao voto.

A personalidade, imprescindível para se atingir a eficácia e autenticidade do voto, caracteriza-se pela obrigação de o eleitor estar presente no momento da votação. Com a presença do eleitor, garante-se, portanto, que o voto seja a fruto da consciência do eleitor; não de outra pessoa, dando-lhe o aspecto de sua autenticidade. Garante, também, que a soberania popular seja exercida, conferindo ao voto a sua eficácia. Por outro lado, a liberdade de voto é essencial para sua sinceridade, uma vez que o voto deva expressar a real vontade do eleitor, que pode escolher algum candidato para representá-lo ou, até mesmo, anular seu voto.

O voto proferido pelo parlamentar não difere, em sua essência, daquele realizado pela sociedade, pois também exige a presença das características da eficácia, sinceridade e autenticidade. A eficácia e autenticidade são alcançadas através da personalidade. Enquanto a sinceridade, obtida pela liberdade de voto, deve expressar, por meio do representante, a vontade do povo. Pois, ao ser eleito, o representante deve manifestar-se sempre em favor dos interesses da sociedade, podendo votar contra ou a favor de certa medida, ou até mesmo, abster-se de votar.

8. Conclusão

A Constituição Federal é a concretização dos valores e anseios da sociedade e, para protegê-los, determinou-se que qualquer norma, seja emenda constitucional, lei ou ato normativo, contrária a procedimentos, princípios, direitos implícitos ou explícitos na Carta Magna, deve ser banida do sistema jurídico.

O parlamentar, ao proferir seu voto, possui ampla liberdade para tomar sua decisão, desde que seja em prol dos interesses da sociedade, uma vez que a representa. A comercialização de voto para aprovação de normas jurídicas fez surgir uma nova forma de inconstitucionalidade, por desrespeitar aspectos essenciais do voto: eficácia, autenticidade e sinceridade.

Nesta nova forma de inconstitucionalidade, o voto deixa de ser uma manifestação da convicção de quem o profere, passando a ser de outro, que não a sociedade, deixando de ser pronunciado em direção ao interesse social, e, sim, de um pequeno grupo de pessoas. O voto do parlamentar perde sua função de decidir em favor do povo, verdadeiro titular do poder supremo do país.

Qualquer norma aprovada com votos viciados não é legítima, pois, ao ferir a essência do voto, o parlamentar atentou contra a representatividade popular, contra a democracia, e conseqüentemente, contra a soberania popular duramente conquistada pelo povo ao longo dos séculos.

Bibliografia

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CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
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DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado, São Paulo, Editora Saraiva, 16ª ed., 1991
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Editora Saraiva, 22ª ed., 1995
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, São Paulo, Editora Método, 10º ed., 2006
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TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 1991