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STF: O crime de apropriação indébita de tributos exige a presença de dolo para sua configuração

STF: O crime de apropriação indébita de tributos exige a presença de dolo para sua configuração

O dolo de apropriação deve ser apurado na instrução criminal, a partir de circunstâncias objetivas factuais, tais como o inadimplemento prolongado sem tentativa de regularização dos débitos, a venda de produtos abaixo do preço de custo, a criação de obstáculos à fiscalização, a utilização de “laranjas” no quadro societário, o encerramento irregular das suas atividades, o valor dos débitos inscritos em dívida ativa superior ao capital social integralizado etc. Tais circunstâncias são meramente exemplificativas e devem ser cotejadas com as provas existentes no caso concreto para fins de aferição do elemento subjetivo do tipo, afirma o ministro-relator Roberto Barroso.

E que “nem todo devedor de ICMS comete o delito. Não haverá crime nos casos em que o comerciante, em virtude de circunstâncias excepcionais, deixar de pagar o tributo em um ou outro mês”.

Veja o acórdão ementado:

Ementa: Direito penal. Recurso em Habeas Corpus. Não recolhimento do valor de ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço. Tipicidade. 1. O contribuinte que deixa de recolher o valor do ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço apropria-se de valor de tributo, realizando o tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990. 2. Em primeiro lugar, uma interpretação semântica e sistemática da regra penal indica a adequação típica da conduta, pois a lei não faz diferenciação entre as espécies de sujeitos passivos tributários, exigindo apenas a cobrança do valor do tributo seguida da falta de seu recolhimento aos cofres públicos. 3. Em segundo lugar, uma interpretação histórica, a partir dos trabalhos legislativos, demonstra a intenção do Congresso Nacional de tipificar a conduta. De igual modo, do ponto de vista do direito comparado, constata-se não se tratar de excentricidade brasileira, pois se encontram tipos penais assemelhados em países como Itália, Portugal e EUA. 4. Em terceiro lugar, uma interpretação teleológica voltada à proteção da ordem tributária e uma interpretação atenta às consequências da decisão conduzem ao reconhecimento da tipicidade da conduta. Por um lado, a apropriação indébita do ICMS, o tributo mais sonegado do País, gera graves danos ao erário e à livre concorrência. Por outro lado, é virtualmente impossível que alguém seja preso por esse delito. 5. Impõe-se, porém, uma interpretação restritiva do tipo, de modo que somente se considera criminosa a inadimplência sistemática, contumaz, verdadeiro modus operandi do empresário, seja para enriquecimento ilícito, para lesar a concorrência ou para financiar as próprias atividades. 6. A caracterização do crime depende da demonstração do dolo de apropriação, a ser apurado a partir de circunstâncias objetivas factuais, tais como o inadimplemento prolongado sem tentativa de regularização dos débitos, a venda de produtos abaixo do preço de custo, a criação de obstáculos à fiscalização, a utilização de “laranjas” no quadro societário, a falta de tentativa de regularização dos débitos, o encerramento irregular das suas atividades, a existência de débitos inscritos em dívida ativa em valor superior ao capital social integralizado etc. 7. Recurso desprovido. 8. Fixação da seguinte tese: O contribuinte que deixa de recolher, de forma contumaz e com dolo de apropriação, o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990. (STF – RHC 163334, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 18/12/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-271  DIVULG 12-11-2020  PUBLIC 13-11-2020)

 

Extrai-se do voto do Relator a seguinte manifestação judiciosa:

“26. O valor referente ao ICMS, cobrado dos consumidores, apenas transita no caixa do sujeito passivo para, em algum momento, a depender dos seus créditos em operações anteriores, ser recolhido aos cofres públicos. No voto da Relatora do RE 574.706, Min. Cármen Lúcia, consignou-se claramente o entendimento, acolhido pela maioria do Plenário, de que, ainda que não recolhido imediata e integralmente, em razão do princípio da não-cumulatividade, o ICMS não se integra ao patrimônio do sujeito passivo e, por isso mesmo, não compõe a base de cálculo de PIS e COFINS: Desse quadro é possível extrair que, conquanto nem todo o montante do ICMS seja imediatamente recolhido pelo contribuinte posicionado no meio da cadeia [distribuidor e comerciante], ou seja, parte do valor do ICMS destacado na “fatura” é aproveitado pelo contribuinte para compensar com o montante do ICMS gerado na operação anterior, em algum momento, ainda que não exatamente no mesmo, ele será recolhido e não constitui receita do contribuinte, logo ainda que, contabilmente, seja escriturado, não guarda relação com a definição constitucional de faturamento para fins de apuração da base de cálculo das contribuições.

  1. Assim, percebe-se a razão pela qual a conduta não se equipara a um mero inadimplemento tributário. É preciso, de fato, algo mais para caracterizar o injusto penal. No âmbito do direito penal tributário, essa especial reprovabilidade está presente, por razões diferentes, tanto na sonegação fiscal como na apropriação indébita tributária.
  2. Na sonegação tributária, a reprovabilidade se extrai da prática de fraude, de simulação ou de omissão; de atos dolosos, enfim, voltados a subtrair do Estado o conhecimento acerca da existência da própria obrigação tributária ou de seus elementos.
  3. Já na apropriação indébita tributária, a censurabilidade da conduta decorre da circunstância de que o agente toma para si um valor que não lhe pertence, ao qual teve acesso pelo único e específico motivo de lhe ter sido atribuído o dever de recolher o tributo.

Diferentemente do delito do art. 1º, o tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990 não requer fraude.

Considerando que, de acordo com a jurisprudência do STF, o valor do ICMS pago pelo consumidor final jamais pertenceu ao contribuinte, tratando-se de um mero ingresso temporário em sua contabilidade, o não recolhimento do imposto caracteriza apropriação indébita.

  1. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA E DOLO DE APROPRIAÇÃO
  2. Como exposto anteriormente, o que distingue a conduta prevista no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990 da mera inadimplência é a circunstância de o sujeito passivo da obrigação tributária se apropriar de um valor que não lhe pertence.

Mais do que isso, como forma de reforçar essa diferenciação entre crime e mera inadimplência, é necessário que a conduta lesione de modo significativo o bem jurídico protegido. Impõese, nesse sentido, uma interpretação restritiva do tipo.

  1. Nem todo devedor de ICMS comete o delito. Não haverá crime nos casos em que o comerciante, em virtude de circunstâncias excepcionais, deixar de pagar o tributo em um ou outro mês.
  2. A situação é diversa em relação aos devedores contumazes, que fazem do inadimplemento seu modus operandi. Trata-se de devedores que utilizam os valores de ICMS arrecadados dos consumidores para financiar suas atividades empresariais, permanecendo no mercado, de forma predatória, por vários anos[1]. Quando promovidos atos de cobrança contra tais contribuintes, no mais das vezes não se encontram bens penhoráveis e a execução se mostra infrutífera.
  3. A propósito, vale ressaltar que o STF tem reconhecido a constitucionalidade de normas que preveem medidas de combate a devedores contumazes, como a cassação de registro especial para fabricantes de cigarros perante a Receita Federal. Para o Tribunal, “não há que se falar em sanção política se as restrições à prática de atividade econômica objetivam combater estruturas empresariais que têm na inadimplência tributária sistemática e consciente sua maior vantagem concorrencial” (RE 550769, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, j. 22.05.2013).
  4. É preciso, portanto, que se constate que a inadimplência do devedor é reiterada, sistemática, contumaz, verdadeiro modelo negocial do empresário, seja para enriquecimento ilícito, para lesar a concorrência ou para financiar as próprias atividades. Trata-se de elemento de valoração global do fato, a ser apurado pelo juiz em cada processo concreto. Além da própria conduta atual de inadimplência reiterada, também deve-se levar em consideração o histórico de regularidade de recolhimentos tributários do agente, apesar de episódios de não recolhimentos específicos, justificados por fatores determinados.
  5. Ressalte-se que o delito examinado não admite a forma culposa, sendo necessária a demonstração do dolo. Dado o reconhecimento de que a conduta típica implica a apropriação de valores alheios, o elemento subjetivo assume a forma de dolo de apropriação, a intenção de efetivamente tomar para si os valores do ICMS auferidos do adquirente da mercadoria ou do serviço.
  6. É esse propósito de manter para si, de se apropriar, de modo sistemático, dos valores cobrados do adquirente da mercadoria ou do serviço, sem a intenção de repassá-los ao Estado, que confere significado à conduta de não recolhimento do tributo. Não se trata, portanto, de deixar de adimplir a obrigação tributária com alguma intenção externa a essa conduta, mas do próprio propósito que define o sentido da conduta.
  7. O dolo de apropriação deve ser apurado na instrução criminal, a partir de circunstâncias objetivas factuais, tais como o inadimplemento prolongado sem tentativa de regularização dos débitos, a venda de produtos abaixo do preço de custo, a criação de obstáculos à fiscalização, a utilização de “laranjas” no quadro societário, o encerramento irregular das suas atividades, o valor dos débitos inscritos em dívida ativa superior ao capital social integralizado etc. Tais circunstâncias são meramente exemplificativas e devem ser cotejadas com as provas existentes no caso concreto para fins de aferição do elemento subjetivo do tipo.
  8. Cabe, portanto, ao juiz da Vara Criminal de Brusque/SC examinar se as provas constantes dos autos são suficientes para a demonstração dessa atuação contumaz e do dolo de apropriação dos recorrentes.

VII. CONCLUSÃO

  1. Pelas razões expostas, nego provimento ao recurso, propondo a fixação da seguinte tese: O contribuinte que deixa de recolher, de forma contumaz e com dolo de apropriação, o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990.

É como voto”.

[1] Essa distorção da concorrência fica evidente no comércio de produtos de alta demanda, elevada carga tributária e baixa margem de lucro, como nos setores de combustíveis, bebidas, cigarros e medicamentos. O comerciante que metodicamente deixa de recolher o ICMS vende seus produtos muitas vezes abaixo do preço de custo, inviabilizando a atividade lícita de seus competidores.

STF

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Foto: divulgação da Web

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