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Ciclo de saúde mental e judiciário relativiza a influência do ambiente de trabalho no adoecimento psicológico

O município de Ipatinga sediou, na última sexta feira (8 de novembro), o IV Ciclo de Estudos sobre Saúde Mental, Judiciário e Contemporaneidade, que ocorreu no auditório da Faculdade de Direito de Ipatinga (Fadipa). A atividade contou com o apoio da referida faculdade, da subseção local da OAB e do Núcleo de Investigação e Estudos em Psicanálise e Psiquiatria Judiciária (Niep-J). Foi um espaço para debate e aprofundamento de temas que vinculam o direito e as ciências ligadas ao estudo da mente e da psicologia.

O evento iniciou por volta das 9h com a formação da mesa de abertura, integrada pelos desembargadores Fernando Rios Neto e Luiz Antônio de Paula Iennaco, do TRT-MG, pelo juiz titular da 2ª Vara do Trabalho de Governador Valadares, Hudson Teixeira Pinto, pelo diretor da Fadipa, Jésus Nascimento da Silva, e pelo vice-presidente da subseção local da OAB, advogado Evaldo Maurílio Faria de Oliveira.

Mesa I – Subjetividade Contemporânea e Dano Moral
Participaram da primeira mesa sobre “Subjetividade Contemporânea e Dano Moral”, que ocorreu logo após a abertura, a psicóloga e psicanalista Judith Euchares Ricardo de Albuquerque, que coordena o NIEP-J e integra o quadro do TRT-MG; a psicóloga organizacional Rejane Miranda Sampaio Barbosa de Brito, que é também bacharel em direito, leciona psicologia na Faculdade Pitágoras e direito na Fadipa; e o desembargador Luiz Antônio de Paula Iennaco, que atuou como debatedor.

A primeira palestrante partiu da ideia de que vivemos numa sociedade moralmente desorientada, onde se prioriza a produtividade e enfatiza o discurso do consumo, enquanto a essência das relações sociais se encontra vazia. Euchares Albuquerque relaciona isso ao enfraquecimento do “pai”, cujo papel regulador é hoje ocupado pelo judiciário. Para ela, há uma epidemia de pedidos de assédio moral que representam, no fundo, demandas para que o “outro” nos complete. Ao mesmo tempo, a psicanalista acredita que o judiciário é a única instância capaz de impedir atos abusivos contra empregados, numa sociedade em que o saber domesticado das novas ideologias gerenciais faz o trabalhador questionar pouco e produzir muito, levando o discurso capitalista a eliminar a essência do sujeito.

Na sequência, a psicóloga Rejane Barbosa de Brito afirmou que o trabalho tem uma importância fundamental na construção da subjetividade. Nesse sentido, ganha a noção que o empregado tem da utilidade ou inutilidade do seu trabalho, e a consequência disso na auto-estima. Por outro lado, diferenças nos atributos de cada indivíduo fazem com que, enquanto uma pessoa se adequa a determinado tipo de serviço, outra se adequa a outro. Além disso, falou da chamada “disciplina da fome”, que leva o indivíduo a se submeter a um trabalho em função de necessidades biológicas ou materiais. Nesse caso, Rejane de Brito opina que o melhor é tentar a aprender a gostar do que se faz. Ela também listou fatores citados pelo Ministério da Saúde vinculando a situação do trabalhador e a saúde mental, como falta de suporte social, ameaças à integridade física ou psicológica, condições degradantes, pressão do tempo, trabalhos repetitivos, conflito de papéis, etc.

O desembargador Luiz Antônio de Paula Iennaco analisou que vivemos numa época em que as pessoas não querem mais admitir sentir dor. Ele discordou da ideia de que o trabalho forme a subjetividade do homem, opinando que “o homem é mais que o trabalho”. Para o magistrado, o trabalho está ligado ao sofrimento, não diretamente a satisfação, mas é um meio para poder se atingir a satisfação: “trabalho de segunda a sexta para viver sábado e domingo”. Ao defender a ideia de que “viver não é uma coisa saudável”, e de que os fatores de adoecimento estão ligados ao fato de viver a vida em sociedade, o debatedor lembrou do incômodo causado pelo ruído dos portões de garagem que, segundo ele, enlouquecem qualquer transeunte. Ao finalizar sua fala, fez um questionamento: “em que momento o trabalho adoece mentalmente, como estabelecer um nexo causal?”. O desembargador Luiz Antônio de Paula Iennaco diz que devem ser considerados os fatores externos ao trabalho e os internos ao indivíduo.

Mesa II – Culpa e Responsabilidade
A segunda mesa teve, como título, “Culpa e Responsabilidade”, e contou com a participação do psiquiatra e psicanalista Stelio Lage Alves, doutor em filosofia pela Universidade Complutese de Madri; do juiz Tarcísio Corrêa de Brito, titular da 1ª Vara do Trabalho de Governador Valadares, também mestre em filosofia do direito e relações internacionais; e da juíza Martha Halfeld Furtado de Mendonça Schmidt, titular da 3ª Vara do Trabalho de Juiz de Fora e conselheira da Escola Judicial, como debatedora.

O magistrado de Governador Valadares avaliou que o discurso de responsabilidade e culpa deve ter seu sentido problematizado e reconstruído a partir da tensão entre a definição do que é responsabilidade objetiva e subjetiva. Para o juiz Tarcísio Corrêa de Brito, o excesso de pedidos de dano moral cria dificuldades para a análise dos mesmos com profundidade. Ele discorreu sobre diferentes vertentes utilizadas para o julgamento de responsabilidade e culpa nesses casos. A proteção à saúde e ao ambiente de trabalho saudável está relacionada com o direito à vida, à saúde e ao trabalho, conforme previsto na Constituição Federal e em convenções da OIT. São direitos fundamentais, segundo ele explicou, de eficácia vertical – que se refere à adesão dos países a tratados internacionais – e horizontal – que inclui a responsabilização do empregador, e não só do Estado, partindo de uma noção de cidadania dentro da empresa. Nesse sentido, trata-se de reconhecer o trabalhador como cidadão e não como peça de reposição na empresa. O juiz Tarcísio Corrêa de Brito também discorreu sobre o conceito de razoabilidade – na perspectiva de proporcionalidade, equidade e dever de congruência -, sobre formas de responsabilização e sobre nexo causal.

O psicanalista e doutor em filosofia Stelio Lage Alves iniciou sua exposição afirmando que a “culpa” é um tabu, pois não existe um tratado geral sobre ela. Explicou que se, até o século XVIII, as punições eram executadas de forma espetacular para impor um padrão corretivo, a partir daquele século o espetáculo passou a ser visto como mais importante do que a punição. Para o debatedor, o esfacelamento do corpo utilizado nas punições antigas revela o sentido de que, quando a culpa se instala, a pessoa já não se encontra totalmente inteira. Atualmente, aquele esfacelamento antigo foi substituído pela fragmentação do discurso. A ideia de responsabilidade, conectada à de culpa, implicaria num diálogo que, na visão defendida pelo psicanalista, é na verdade um engano. Na busca da ilusão de completude, a falsa conexão entre o “eu” e o “outro” seria um ponto esvaziado. A partir da visão da psicanálise, Stelio Lage diz que não há como eliminar a culpa da sociedade. Diferente é a visão das religiões que, segundo o palestrante, transformaram a fé em objeto de consumo.

A juíza Martha Halfeld Furtado de Mendonça Shmidt falou do esforço de assimilação de novos conceitos que decorre do aumento de processos com pleitos relacionados à doença mental, o que traz novas exigências de capacitação para o magistrado. Para ela, as áreas do direito, da psicologia e psicanálise têm pontos em comum, como o controle das pulsões, os interditos e as proibições; mas, por outro lado, também há pontos de verdadeiro impasse entre ambas. De acordo com as suas palavras, enquanto o direito procura solucionar e decidir em nome do indivíduo – substituindo a vontade -, a psicanálise incentiva o indivíduo a encontrar seu próprio caminho. Ao zelar pela pluridisciplinariedade, promovendo um debate onde se encontram presentes diferentes enfoques, o ciclo de saúde mental, segundo a magistrada, reforça a tradição da Escola Judicial desde a sua reestruturação, em 2001. A juíza acredita que ambas as ciências têm a ganhar com essa interlocução, que é própria das sociedades evoluídas.

Mesa III – As Competências do Juiz

 

As atividades da tarde iniciaram com a mesa III, que abordou “As Competências do Juiz”, integrada pelo ministro Aloysio Corrêa da Veiga, do TST, pelo desembargador Luiz Antônio de Paula Iennaco e pelo juiz Paulo Emílio Vilhena da Silva, titular da 1ª Vara de Passos, que atuou como debatedor.

O teor da fala do ministro pode ser conferido em matéria já publicada, clicando aqui.

O desembargador comentou a expectativa social de que o juiz deva saber de tudo. Mas, segundo ele, muitas decisões são tomadas através da observação de fatos, com conhecimentos que não são técnicos. A partir daí, ele avalia como lidar com o “não saber”. O desembargador Luiz Antônio de Paula Iennaco acredita que as características profissionais do juiz são um reflexo das suas características pessoais, mais que do saber acadêmico e técnico. Ao falar do volume de processos que recai sobre os membros do Judiciário, o desembargador disse que, sozinho, conseguiria dar conta apenas de dois processos por dia. Além disso, também mencionou a necessidade de os magistrados atuarem como gestores de gabinetes. Para o desembargador, o grande número de laudos periciais que devem ser analisados criticamente se traduz numa sobrecarga de tarefas, e leva a sintomas de fadiga. Também fez um apelo com o objetivo de sensibilizar os “que tem o poder” a superar a cobrança de metas, substituindo-a por uma prática de gestão integrada. Segundo ele, os esforços dos magistrados têm que ser reconhecidos, e não punidos.

O juiz Paulo Emílio Vilhena avalia que há um aumento do conflito nas relações de trabalho. Por isso, segundo ele, é necessário um enfoque de prevenção para levar o direito à população. O titular da 1ª Vara de Passos acredita que o capital deve ser provocado a instituir medidas que evitem a lesão do trabalhador. Também defende que se deve esquecer a questão da culpa e analisar a responsabilidade civil com enfoque no risco e no dano. Ele opinou: “a sociedade quer que nós trabalhemos antes da lesão”.

Mesa IV – Dano Moral

A última mesa do ciclo contou com a participação da psiquiatra forense Naray Jesimar Paulino, que é médica legista do Instituto Médico Legal e faz parte do Niep-J; do desembargador Fernando Rios Neto, do TRT-MG e também membro do Niep-J; e da juíza Célia das Graças Campos, titular da 1ª VT de João Monlevade, que lá estava como debatedora.

A psiquiatra forense acredita que hoje em dia há uma banalização do que é apresentado como doença. Para ela, a questão da saúde mental hoje é coordenada pelos laboratórios. “Você precisa ser feliz; se não é feliz, está doente; se está doente, toma remédio”, diz Naray Paulino. Ao falar do método utilizado para avaliar depressão que se baseia na constatação da ocorrência de desânimo, perda de prazer para fazer as coisas e falta de estímulo ou prazer nas atividades do quotidiano; a palestrante pergunta se alguém na platéia deixou de sentir algum desses sentimentos nas últimas duas semanas. “Se tem alguém assim, parabéns, a indústria farmacêutica vai te matar”, ironizou. Ao criticar uma abordagem que confunde o sentimento de frustração e tristeza com doença, ela afirma que, no mundo de hoje, há uma busca de prazer a todo custo, e que o modelo é ser feliz e sorridente. Em relação ao seu trabalho como perita, diz que só é fácil estabelecer um nexo entre trabalho e saúde mental quando o ambiente é claramente deteriorado, como quando há elementos químicos que podem interagir com a mente. Há também as situações em que o nexo não pode ser estabelecido e as situações intermediárias, como as de depressão. Os casos do chamado “bornout”, segundo ela, estão relacionados com a personalidade do trabalhador, não tendo o trabalho como causa exclusiva. Naray Paulino acredita que é necessário constatar a realidade da organização do trabalho, verificando a situação de cada empresa no local, ao fazer a perícia.

O desembargador Fernando Rios Neto comparou a perícia de um engenheiro, prática e concisa, à analise de uma situação de alegado adoecimento psicológico ou mental, em que devem ser consideradas também as condições de vida e a sensibilidade da pessoa. Ele acredita que esse tipo de avaliação não se limita ao parecer técnico do perito: “subjetividade e responsabilidade na visão pericial é uma, na visão do jurista é outra”. Na visão jurídica, têm que ser consideradas as condições de trabalho, segundo o magistrado. Ele avaliou que uma dada situação não considerada como causadora de adoecimento pelo perito, pode ser julgada como de dano moral pelo magistrado. O desembargador disse que se, por um lado, o dano moral não pode ser mensurável ou palpável; por outro, a atuação do agente agressor é indenizável. Para ele, é importante levar em consideração a atitude de prevenção e o risco ao qual o trabalhador é submetido.

A debatedora, juíza Célia das Graças, expôs sua preocupação com a judicialização exacerbada. Para ela, o Judiciário saiu de um extremo que consistia na exclusiva condenação da culpa para, hoje, atingir o extremo oposto, que é o do risco integral, sem ter havido um meio-termo. “Tudo é dano moral, tudo fere a suscetibilidade da pessoa”, comentou.

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