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Não configura roubo quem se apropria de cordão do cliente que não paga o serviço sexual

Ajusta-se à figura típica prevista no art. 345 do CP (exercício arbitrário das próprias razões) – e não à prevista no art. 157 do CP (roubo) – a conduta da prostituta maior de dezoito anos e não vulnerável que, ante a falta do pagamento ajustado com o cliente pelo serviço sexual prestado, considerando estar exercendo pretensão legítima, arrancou um cordão com pingente folheado a ouro do pescoço dele como forma de pagamento pelo serviço sexual praticado mediante livre disposição de vontade dos participantes e desprovido de violência não consentida ou grave ameaça. Para a configuração do delito previsto no art. art. 345 do CP, parte da doutrina pátria entende ser desnecessária a classificação da pretensão do agente como “legítima”, desde que seja, em tese, passível de debate judicial. Nesse sentido, para o reconhecimento do ilícito penal, seria necessário que a dívida possa ser objeto de cobrança judicial. Há, todavia, a seguinte ponderação doutrinária: “O elemento material do crime é fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer uma pretensão. Esta é o pressuposto do delito. Sem ela, este não tem existência, incidindo o fato em outra disposição legal. A pretensão, por sua vez, se assenta em um direito que o agente tem ou julga ter, isto é, pensa de boa-fé possuí-lo, o que deve ser apreciado não apenas quanto ao direito em si, mas de acordo com as circunstâncias e as condições da pessoa. Consequentemente, a pretensão pode ser ilegítima – o que a lei deixa bem claro: ‘embora legítima’ – desde que a pessoa razoavelmente assim não a julgue.” Ciente disso, convém delimitar que o tipo penal em apreço (art. 345 do CP) relaciona-se, na espécie, com uma atividade (prostituição) que, a despeito de não ser ilícita, padece de inegável componente moral relacionado aos “bons costumes”, o que já reclama uma releitura do tema, à luz da mutação desses costumes na sociedade pós-moderna. Não é despiciendo lembrar que o Direito Penal hodiernamente concebido e praticado nas democracias ocidentais passou por uma “longa encubação no pensamento jusnaturalista da época iluminista”, resultando na “separação entre legitimação interna e legitimação externa ou entre direito e moral”, como bem pontuado por doutrina. Registre-se, nesse passo, a modificação legislativa relativamente recente (Lei n. 12.015/2009) que, entre outras coisas, alterou a denominação dos crimes previstos no Título VI do Código Penal, com a substituição da vetusta ideia de que o bem jurídico tutelado eram os costumes, passando a conferir proteção mais imediata à liberdade de autodeterminação sexual de adultos e reafirmando a proteção do desenvolvimento pleno e saudável de crianças, adolescentes e incapazes em geral. Sob a perspectiva de que a história dos crimes sexuais é, em última análise, a história da secularização dos costumes e práticas sexuais, não é possível negar proteção jurídica àqueles que oferecem seus serviços de natureza sexual em troca de remuneração, sempre com a ressalva, evidentemente, de que essa troca de interesses não envolva incapazes, menores de 18 anos e pessoas de algum modo vulneráveis, desde que o ato sexual seja decorrente de livre disposição da vontade dos participantes e não implique violência (não consentida) ou grave ameaça. Acenando nessa direção, oportuna é a transcrição do seguinte excerto doutrinário: “Na órbita do Direito Civil, a prostituição deve ser reconhecida como um negócio como outro qualquer (…) O comércio sexual entre adultos envolve agentes capazes. Como já se deixou claro, reconhecida a atividade no rol das profissões do Ministério do Trabalho, o objeto é perfeitamente lícito, pois é um contato sexual, mediante remuneração, entre agentes capazes. Seria o equivalente a um contrato de massagem, mediante remuneração, embora sem sexo. Não há forma prescrita em lei para tal negócio, que pode ser verbal.” Aliás, de acordo com o Código Brasileiro de Ocupações, de 2002, regulamentado pela Portaria do Ministério do Trabalho n. 397, de 9 de outubro de 2002, os profissionais do sexo são expressamente mencionados no item 5198 como uma categoria de profissionais, o que, conquanto ainda dependa de regulamentação quanto a direitos que eventualmente essas pessoas possam exercer, evidencia o reconhecimento, pelo Estado brasileiro, de que a atividade relacionada ao comércio sexual do próprio corpo não é ilícita e que, portanto, é passível de proteção jurídica. Dessas considerações – que, por óbvio, não implicam apologia ao comércio sexual do próprio corpo, mas apenas o reconhecimento, com seus naturais consectários legais, da secularização dos costumes sexuais e a separação, inerente à própria concepção do Direito Penal pós-iluminista, entre Moral e Direito – pode-se concluir, como o faz doutrina, ser perfeitamente viável que o trabalhador sexual, não tendo recebido pelos serviços sexuais combinados com o cliente, possa se valer da Justiça para exigir o pagamento. Sob esse viés, mostra-se correto afastar a tipicidade do crime de roubo – cujo elemento subjetivo não é compatível com a situação aqui examinada – e entender presente o exercício arbitrário das próprias razões, ante o descumprimento do acordo de pagamento pelos serviços sexuais prestados. HC 211.888-TO, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, julgado em 17/5/2016, DJe 7/6/2016.
Veja o acórdão:
HABEAS CORPUS. ROUBO IMPRÓPRIO. NULIDADE DA SENTENÇA. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. NULIDADE DO ACÓRDÃO. NÃO OCORRÊNCIA. DESCLASSIFICAÇÃO PARA EXERCÍCIO ARBITRÁRIO DAS PRÓPRIAS RAZÕES. PRETENSÃO LEGÍTIMA E PASSÍVEL DE DISCUSSÃO JUDICIAL. REGRA. MORAL E DIREITO. SEPARAÇÃO. MUTAÇÃO DOS COSTUMES. SERVIÇO DE NATUREZA SEXUAL EM TROCA DE REMUNERAÇÃO. ACORDO VERBAL. AUSÊNCIA DE PAGAMENTO. USO DA FORÇA COM O FIM DE SATISFAZER PRETENSÃO LEGÍTIMA. CARACTERIZAÇÃO DO DELITO PREVISTO NO ART. 345 DO CÓDIGO PENAL. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. OCORRÊNCIA. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.
1. A matéria atinente à nulidade da sentença não foi submetida à análise pelo colegiado do Tribunal estadual, circunstância que impede seu conhecimento por esta Corte, sob pena de indevida supressão de instância.
2. Não mais se sustenta, à luz de uma visão secular do Direito Penal, o entendimento do Tribunal de origem, de que a natureza do serviço de natureza sexual não permite caracterizar o exercício arbitrário das próprias razões, ao argumento de que o compromisso assumido pela vítima com a ré – de remunerar-lhe por serviço de natureza sexual – não seria passível de cobrança judicial.
3. A figura típica em apreço relaciona-se com uma atividade que padece de inegável componente moral relacionado aos “bons costumes”, o que já reclama uma releitura do tema, mercê da mutação desses costumes na sociedade hodierna e da necessária separação entre a Moral e o Direito.
4. Não se pode negar proteção jurídica àquelas (e àqueles) que oferecem serviços de cunho sexual em troca de remuneração, desde que, evidentemente, essa troca de interesses não envolva incapazes, menores de 18 anos e pessoas de algum modo vulneráveis e desde que o ato sexual seja decorrente de livre disposição da vontade dos participantes e não implique violência (não consentida) ou grave ameaça.
5. Acertada a solução dada pelo Juiz sentenciante, ao afastar o crime de roubo – cujo elemento subjetivo não se compatibiliza com a situação versada nos autos – e entender presente o crime de exercício arbitrário das próprias razões, ante o descumprimento do acordo verbal de pagamento, pelo cliente, dos préstimos sexuais da paciente.
6. O restabelecimento da sentença, mercê do afastamento da reforma promovida pelo acórdão impugnado, importa em reconhecer-se a prescrição da pretensão punitiva, dado o lapso temporal já transcorrido, em face da pena fixada.
7. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício, para restabelecer a sentença de primeiro grau, que desclassificou a conduta imputada à paciente para o art. 345 do Código Penal e, por conseguinte, declarar extinta a punibilidade do crime em questão.
(HC n. 211.888/TO, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 17/5/2016, DJe de 7/6/2016.)
STJ
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