Os herdeiros têm legitimidade para propor ação de anulação de doação inoficiosa feita à companheira do pai
Os herdeiros têm legitimidade ativa para figurar no polo ativo de ação de reconhecimento de união estável post mortem entre seu pai e a suposta companheira, com vistas à declaração de nulidade de doação por ela feita a seus filhos exclusivos, a fim de preservarem seus próprios direitos hereditários, esse foi o entendimento firmado pela 4ª Turma do STJ, em caso concreto de doação extraoficial pelo companheiro a sua companheira, sem conhecimento dos seus filhos.
Veja o acórdão:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. UNIÃO ESTÁVEL E NULIDADE DE DOAÇÃO TIDA POR INOFICIOSA. PREJUDICIAIS. DECADÊNCIA. SÚMULA N. 284 DO STF. AÇÃO PROPOSTOA POR HERDEIROS EXISTÊNCIA DE LIAME SUBJETIVO E INTERESSE PRÓPRIO. ALEGAÇÃO DE LESÃO A DIREITOS HEREDITÁRIOS. LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM RECONHECIDA. MÉRITO. UNIÃO ESTÁVEL RECONHECIDA. REEXAME DE FATOS E PROVAS. SÚMULA N. 7. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICO-JURÍDICO.
- A Corte estadual entendeu que se tratava de pedido de reconhecimento de união estável c/c nulidade de doação inoficiosa, e não de anulação de escritura pública, cujo prazo prescricional seria o decenal.
- A discussão sobre a incidência do prazo decadencial de 4 anos não guarda qualquer correlação com o que foi decidido. Incidência da Súmula n. 284 do STF.
- Os herdeiros tem legitimidade ativa para figurar no polo ativo de ação de reconhecimento de união estável post mortem entre seu pai e a suposta companheira, com vistas à declaração de nulidade de doação por ela feita a seus filhos exclusivos, a fim de preservarem seus próprios direitos hereditários.
- Não há como alterar, em sede de recurso especial, o entendim ento de que os finados conviventes formaram uma sociedade de fato e uma união estável antes de se casarem e que, dado o regime de bens que deveria regular essa convivência, a doação feita pela companheira a seus filhos exclusivos violou o direito do varão sobre parte deles, tornando-se inoficiosa. Aplicação da Súmula n. 7 do STJ.
- Os acórdãos confrontados não são aptos para demonstrar o dissídio jurisprudencial quando não há semelhança entre suas bases fáticas.
- Recurso especial conhecido em parte e desprovido.
(STJ – REsp n. 1.791.674/MG, relator Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 20/2/2024, DJe de 22/2/2024.)
Veja os destaques do voto do relator:
Decadência (art. 178, II, do CC)
Não há como apreciar a questão neste recurso especial, visto que a Corte estadual, com base no acervo probatório, deu outro enquadramento jurídico ao pedido e, com isso, ficou prejudicada a prejudicial de decadência. Vale salientar que, opostos embargos de declaração (fls. 742-763) para suprir alegada omissão quanto à incidência do prazo decadencial previsto no art. 178, II, do Código Civil, foram eles justificadamente rejeitados, conforme trecho adiante transcrito (fl. 757): Acerca de suposto decaimento do autor em razão do transcurso de prazo decadencial (i), tem-se que, considerando ampla interpretação do julgado (art. 489, §3°, CPC), a questão foi devidamente enfrentada pelo acórdão embargado. Explico.
Afirma o embargante que conforme determina o art. 178, II, do CC/02 a contagem do prazo decadencial de quatro anos se inicia-se a partir do ato cuja anulação se pretende, e, em, se tratando de anulação de escritura pública de doação, o aludido prazo deve ser contado da data da lavratura da escritura, à luz do disposto no art. 1.245 deste mesmo diploma legal. Ocorre que, conforme constou na decisão embargada, ao apreciar a presente demanda, este Tribunal entendeu tratar-se de declaração de nulidade de doação inoficiosa, e não de mera anulação de escritura pública de doação, como pretende suscitar o embargante. Tratando-se de ação declaratória de nulidade de doação inoficiosa, quanto aos efeitos do decurso do tempo no direito dos autores, seguiu-se orientação do c. STJ, segundo a qual a estes casos aplica-se o prazo decenal previsto no art. 205 do CC/02. É de se ver o seguinte trecho do acórdão (…) Vê-se que a Corte estadual, a partir do novo enquadramento dado à demanda, entendeu que não teria que analisar a questão relativa à alegada decadência do direito e, sim, eventual prescrição da pretensão que foi afastada, porque, no caso, o prazo seria o decenal, de acordo com o art. 205 do CC/2002.
b) Reconhecimento de união estável antes do casamento; propriedade e partilha de bens havidos na constância da convivência (arts. 1º e 5º, § 1º, ambos da Lei n. 9.378/1996; 1.659, II, 1.723 e 1.275, todos do Código Civil)
Na sequência, passou à análise da prova documental (comprovante de residência, certidão de registro de imóveis, pedido de separação judicial ajuizado, em 31/8/1983, pela primeira esposa de N. G. L., registro de casamento entre ele a T. N. C., que passou a se chamar T. N.C. L.), além de prova testemunhal que foi uníssona em afirmar a relação de convivência, de forma pública e duradoura, havida entre eles, desde outubro de 1982 até 18/3/2005, quando sobreveio o casamento civil de ambos.
Quanto à partilha de bens adquiridos na constância dessa convivência, o acórdão, invocando o disposto no art. 5º, § 1º, da Lei n. 9.278/1996 e 1.725 do Código Civil, também a partir da análise de fatos e provas, conclui o que adiante se segue: In casu, não havia contrato escrito entre N.G.L. e T.N.C., pelo que imperiosa a aplicação da regra que presume a aquisição mediante a conjugação de esforços dos companheiros, o que resulta a titularidade em 50% para cada um.
Assim sendo, todos os bens adquiridos no período da união estável, sob égide da Lei 9.278/96 e do Código Civil de 2002, são comuns ao casal. Das escrituras constantes às fls. 22, 23/24v, 25/26v, infere-se que os imóveis matricula n° 7.444, n° 12.412 e n° 5.995, foram adquiridos por T.N.C., nos anos de 2002, 2001, 1988 respectivamente. Desta feita, com relação ao imóvel de matrícula n. 5.995 adquirido no ano de 1988 por T.N.C., tem-se aplicável as regras concernentes à sociedade de fato.
Tendo em conta que inexiste nos autos prova da contribuição patrimonial de N.G.L para aquisição do imóvel em comento, a alegação de partilha revela-se descabida. Todavia, quanto aos imóveis de matricula n” 7.444 e n° 12.412, adquiridos durante a união estável entre T.N.C. e N.G.L. tem-se devida a partilha na proporção de 50%, de propriedade de N.G.L. Está claro, portanto, que, na instância ordinária, apreciando o conjunto fático-probatório dos autos, concluiu pela existência de uma relação de convivência em período anterior ao casamento, mais precisamente entre outubro de 1982 até 18/3/2005, e as questões patrimoniais, mais precisamente em relação à propriedade dos imóveis indicados na petição inicial e respectiva partilha, de modo que o conhecimento do recurso especial, no ponto, implicaria reexame de questões fático-probatórias presentes nos autos, o que é inviável, conforme o enunciado da Súmula n. 7 desta Corte.
No que concerne à alegada violação dos arts. 1º da Lei n. 9.378/1996 e 1.723 do Código Civil, observo que os recorrentes sustentam que o acórdão recorrido não deu uma definição jurídica dos fatos, não havendo “provas ou elementos concretos e suficientes que permitam concluir que N. F. da L (pai dos recorridos) e a mãe dos recorrentes T.do N. C.L., antes do casamento realizado em 2005, tinham o intuito de que sua união se transfigurasse em convivência duradoura, pública e contínua, de uma homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família” (fl. 798).
Como é de conhecimento geral, a união estável é uma situação fática, em que se reconhece ou não, consoante as provas produzidas. No caso, a Corte estadual entendeu que havia elementos probatórios suficientes para tal reconhecimento. Não há como alterar esse entendimento sem revisar fatos e provas, o que atrai o óbice da Súmula n. 7 do STJ. De toda sorte, assentadas as premissas fáticas pelo TJMG, a parte recorrente não conseguiu demonstrar em que medida tais dispositivos teriam sido violados. Ora, a deficiência na fundamentação recursal obsta o conhecimento do apelo extremo se, da leitura, não for possível aferir de que maneira o acordão impugnado violou os dispositivos de lei federal indicados no recurso especial, incidindo o óbice da Súmula n. 284 do STF.
O mesmo se dá quanto aos demais artigos de lei federal indicados. A propósito, os recorrentes, nas razões do recurso especial, não se desincumbiram de demonstrar, de forma clara e específica, violação de legislação federal, especialmente porque não desenvolveram qualquer argumentação aceca da suposta afronta aos arts. 1.659, II, e 1.725 do Código Civil.
c) Ilegitimidade ativa ad causam – violação dos arts. 18 e 19 do CPC
O que aqui se indaga é se os herdeiros de N. G. L poderiam ajuizar uma ação de reconhecimento de união estável post mortem contra os herdeiros de T. N. C, com vistas à anulação de uma doação, tida por inoficiosa, realizada por T. N. C a seus filhos durante o período de convivência entre os respectivos pais, e sem observância aos ditames legais, o que culminaria por atingir, conforme o caso, seus direitos hereditários.
Como bem destacado no parecer ministerial de fls. 883-892, subscrito pelo Subprocurador-Geral da República Maurício Vieira Bracks, essa é a principal tese jurídica discutida no recurso especial, já que o acórdão recorrido, por maioria de votos, reformou a sentença para reconhecer que o “herdeiro detém legitimidade ativa para propor ação de reconhecimento e dissolução de união estável entre companheiros já falecidos, uma vez que esta relação jurídica gera efeitos na sua esfera patrimonial, o que configura, pois, a pertinência subjetiva da ação” (fl. 891).
A propósito, os artigos 18 e 19 do CPC assim dispõem:
Art. 18. Ninguém poderá pleitear direito alheio em nome próprio, salvo quando autorizado pelo ordenamento jurídico. Parágrafo único. Havendo substituição processual, o substituído poderá intervir como assistente litisconsorcial.
- O interesse do autor pode limitar-se à declaração: I – da existência, da inexistência ou do modo de ser de uma relação jurídica; II – da autenticidade ou da falsidade de documento.
Ora, o direito à herança é regulado por lei e, se os herdeiros entendem que foram lesados em seu direito hereditário, por força de doação inoficiosa feita pela companheira de seu pai a seus filhos exclusivos, não se pode excluir deles (herdeiros) o direito de buscar a proteção jurisdicional, ainda que para isso seja necessário o ajuizamento de uma ação de reconhecimento de união estável post mortem.
Isso porque não há como reconhecer o caráter da doação feita por T. N. C. a seus filhos, ora recorrentes, sem analisar o relacionamento que ela mantinha com N. G. L. ao longo dos anos e verificar, conforme o caso, eventual regime de bens que deveriam incidir nos diversos períodos da convivência.
Com efeito, somente após essa análise e com a eventual declaração da existência de uma união estável entre os finados N. G. L. e T. N. C. é que se poderá aferir se a doação feita por T. N. C a seus filhos atingiu os direitos de N. G. L. sobre os bens doados e, consequentemente, se houve ou não lesão aos direitos hereditários dos autores recorridos.
Afastar a legitimidade de os recorridos, herdeiros de N. G. L., buscarem o que entendem ser de sua propriedade, por força de herança, significaria admitir que há possibilidade de uma possível lesão a direito ficar afastada do controle jurisdicional, o que é inadmissível, inclusive por força do disposto no art. 5º, XXXV, da CF. Como bem salientado no acórdão recorrido, o que a parte tem que demonstrar é “a existência de vínculo entre os sujeitos da demanda e a pretensão jurídica vindicada” (fl. 684). No caso, os autores/recorridos demonstraram ser filhos de N. G. L., o qual, segundo mencionaram, mantinham um relacionamento estável e duradouro com T. N. C muito antes de se casarem e que, durante esse período, T. N. C teria doado a seus filhos, de forma contrária à lei de regência, imóveis que, como pretendiam demonstrar, também deveriam integrar o patrimônio de seu pai e, com o falecimento dele, o seu próprio patrimônio.
É evidente que há liame subjetivo entre as partes, bem como uma alegada lesão a direito dos autores, tudo a ratificar o entendimento de que há legitimidade ativa para que os herdeiros de N.G.L postularem o reconhecimento de união estável post mortem entre seu finado pai e a mãe do recorrente, T.N.C., com vistas a anularem a doação por ela feita a seus filhos”
STJ
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