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Ampliação do conceito legal de discriminação

A necessária ampliação do conceito de discriminação atualmente considerado pelos atores políticos brasileiros, sobretudo aqueles vinculados ao sistema Judiciário, contou, recentemente, com dois importantes avanços.

A necessária ampliação do conceito de discriminação atualmente considerado pelos atores políticos brasileiros, sobretudo aqueles vinculados ao sistema Judiciário, contou, recentemente, com dois importantes avanços. O primeiro deles foi a publicação do Relatório Nº 66/06 da Organização dos Estados Americanos (OEA), expondo o conteúdo completo da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre o caso da trabalhadora doméstica Simone Diniz. O segundo passo, ainda que provisório, e também dado no âmbito da OEA, foi a publicação da Proposta de Convenção Interamericana Contra o Racismo e Todas as Formas de Discriminação e Intolerância, em 28 de fevereiro de 2008.
O Relatório Nº66/06 decidiu um caso que se tornou notório por trazer à tona o absurdo dos anúncios discriminatórios, ora de boa aparência, ora apresentando verdadeiro pré-requisito racial, como no caso em comento. Em março de 1997, foi publicado nos classificados do jornal da Folha de S. Paulo anúncio de emprego para trabalhadora doméstica preferencialmente branca. Ao atender o anúncio e se identificar como negra, Simone Diniz foi obstada a concorrer à vaga. O caso foi levado à Delegacia de Crimes Raciais e posteriormente arquivado pelo Judiciário paulista.
Frente à incontestável impunidade do Caso Simone, a Corte da OEA foi muito além de reconhecer e condenar tais anúncios como frontalmente discriminatórios, pois rechaçou publicamente a postura do Estado brasileiro em negar a prestação jurisdicional adequada e isonômica em flagrante caso de racismo, e, o que é ainda mais significativo, avaliou sua legislação, práticas jurídicas e policiais.
Em sua decisão, a Corte da OEA foi bem além de recomendar ao Estado brasileiro a reparação à vítima e o reconhecimento internacional de que foi omisso em relação aos direitos da cidadã. Num plano bem mais abrangente, a OEA enfatizou que o Brasil deve capacitar os operadores do direito e o aparato policial para as questões relativas à discriminação racial e, principalmente, ressaltou a importância de reformar a legislação anti-racista hoje vigente, de modo a não permitir impunidades devido à incapacidade do Estado de reconhecer o racismo como fenômeno real que causa vítimas, diuturnamente, mesmo que por motivos inconscientes.
É nessa linha que a OEA propõe a ampliação da consideração jurídica do conceito de discriminação racial no Brasil. Conforme o relatório, além de “evasiva” e “lacônica”, a Lei 7.716/89, principal regulamentação da proibição constitucional do racismo, exige para sua comprovação “a explícita prática do racismo e a intenção do ofensor de discriminar a vítima”. Em síntese, o relatório demonstra nítido conhecimento dos mecanismos típicos da discriminação à brasileira, porque adverte que, com tamanhas exigências comprobatórias, a legislação não evita exatamente a discriminação velada e revestida de cordialidade, sem conflitos abertos, conforme interpretações sociológicas já clássicas da realidade das relações sociais brasileiras. Convém lembrar da grande eficiência desse tipo de racismo, pois pretere negros sem deixar pistas do porquê.
Se no âmbito penal a OEA propõe que a ampliação da consideração legal do racismo siga a linha de prescindir da intenção para comprovar uma atitude racista, bastando um efeito de exclusão ou óbice com fundamento racial, o ainda provisório texto da Convenção da OEA aprofunda e amplia ainda mais esse princípio. Ao enunciar em seu Artigo 1º, de modo formal e categórico, que a “discriminação indireta” está entre as acepções consideradas pela Convenção, a OEA amplia o conceito de discriminação incluindo qualquer provisão, critério ou prática que, intencionalmente ou não, resulte em distinção, desvantagem, exclusão ou restrição dos direitos humanos ou liberdades fundamentais de pessoas pertencentes a grupos específicos, como o de negros e de mulheres.
Ao explicitar que a discriminação pode se fazer presente independentemente das intenções individuais, a proposta de Convenção da OEA reconhece a titularidade coletiva do direito à não-discriminação. Esse é o principal avanço, sobretudo para fenômenos que operam no nível da cultura e, por isso, podem produzir e reproduzir estigmas e preconceitos à revelia da vontade individual. Em síntese, a OEA propõe aos Estados signatários o reconhecimento, a prevenção e o combate de efeitos gerados por mecanismos não-individuais que prejudicam coletividades e que, por isso mesmo, devem ter na defesa dos interesses coletivos e difusos a principal fonte para a busca da igualdade material.
A via de ampliação proposta pela OEA segue caminho que, apesar de pouco debatido no Brasil, há décadas figura no arcabouço jurídico nacional, sobretudo por meio da Convenção nº 111 da OIT. Foi com base nesse arcabouço que o Ministério Público do Trabalho formulou um programa de ação, constatou os efeitos coletivos gerados pela discriminação nas relações de trabalho, invocou o conceito de discriminação indireta autorizado por essa legislação e, desde 2004, tem buscado judicial e extrajudicialmente reverter tal realidade, com resultados bastante importantes.
Com mais esse esforço internacional, espera-se que nossa sociedade, nosso Legislativo e as nossas cortes compreendam que somente com medidas ampliativas do conceito de discriminação conseguiremos assegurar que casos como o de Simone Diniz e tantos outros tenham a merecida resposta do Estado, assegurando direito fundamental de grande prestígio, como o direito à igualdade.

[b]Autor: Otávio Brito Lopes[/b]
[i]Procurador-geral do Trabalho[/i]

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