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Prescrição e decadência no direito do consumidor

Os conceitos de prescrição e decadência sempre foram um ponto de divergência na teoria geral do direito civil. Afirma Agnelo Amorim Filho que a questão referente à distinção entre prescrição e decadência é tão velha quanto os dois velhos institutos de profundas raízes romanas e continua a desafiar a argúcia dos juristas. [1]

Alguns autores afirmam que a prescrição é a perda da pretensão de reparação de um direito violado, em virtude da inércia de seu titular, nos prazos previstos em lei. E a decadência seria perda de um direito potestativo pelo decurso do tempo e também pela inércia de seu titular.

O objeto do presente estudo não tem a pretensão de dirimir essa divergência existente na doutrina há séculos, muito longe disso, existem estudos e trabalhos monográficos específicos sobre assunto. Aliás, a maioria da doutrina prefere apontar mais as consequências e diferenças entre uma e outra a conceituá-las. A intenção aqui é apontar e denunciar que no direito do consumidor tais institutos também são extremamente controversos, principalmente quanto aos prazos aplicáveis.

Dispõe o art. 26, § 2º, do CDC que “obstam a decadência: I – a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca; II – (Vetado). III – a instauração de inquérito civil, até seu encerramento”.

Com relação ao primeiro inciso, não se exige que a reclamação seja por escrito. Pode-se dar por meio eletrônico, oral, telefônico etc. É importante que o consumidor indique meios para comprovar sua reclamação como número de protocolo e outros dados que se fizerem necessários. [2]

A partir de 1º de dezembro de 2008, entrou em vigor o Decreto nº 6.523, que fixa normas gerais sobre os serviços de atendimento ao consumidor (SAC). Em seu art.15, § 3º, está estipulado que “é obrigatória manutenção da gravação das chamadas efetuadas para o SAC, pelo prazo mínimo de 90 (noventa) dias, durante o qual o consumidor poderá requerer acesso ao seu conteúdo”.

A outra hipótese, mais rara de acontecer, é a possibilidade de se obstar o curso do prazo decadencial através do inquérito civil, que é o procedimento administrativo investigatório utilizado pelo Ministério Público para apurar lesão a direitos coletivos, permitindo posterior ajuizamento de ação coletiva. Tal procedimento tem previsão na Constituição (art. 129, III) e na Lei nº 7.347/85 (Lei de Ação Civil Pública).

Em termos de benefícios individuais imediatos, o referido dispositivo tem pouca aplicação prática para os consumidores individuais, já que as investigações instauradas pelo MP, através desse inquérito, podem demorar bastante.

A doutrina também aponta divergência sobre o verbo “obstar” do art. 26, § 2º, do CDC. É importante reconhecer que os prazos podem ser suspensos ou interrompidos. Na suspensão, o prazo volta a fluir com o restante que faltava no momento da suspensão; já na interrupção, o prazo volta ser contado novamente do zero.

A divergência existe até mesmo com relação aos critérios científicos para se diferenciar prescrição e decadência. Antônio Rizzatto Nunes afirma que a opção pelo termo “obstar” se deu para fugir da discussão doutrinária a respeito da prescrição, se ela pode ser interrompida ou suspensa. [3]

A doutrina tem entendido que, apesar das discussões técnicas acerca do tema, a melhor solução seria entender que o termo “obstar” teria o mesmo significado de interrupção, ou seja, o prazo, uma vez obstado, começaria a contar do início novamente. Tal entendimento se coaduna mais com o caráter protetivo do Código de Defesa do Consumidor.

Outro ponto polêmico com relação aos prazos é o que diz respeito ao prazo prescricional previsto na Convenção de Varsóvia. O CDC prevê um prazo prescricional de 5 anos, enquanto a referida convenção, da qual o Brasil é signatário, prevê um prazo de 2 anos. O STF já teve a oportunidade de se manifestar sobre o tema no RE nº 297.901/RN, ocasião em que entendeu que prevalecia o prazo previsto na Convenção.

Apesar dessa decisão do STF, o Pretório Excelso, nos últimos julgados, vem estabelecendo uma preferência pela aplicação do CDC em detrimento da Convenção de Varsóvia. Esse também é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que entende ser o prazo de 5 anos previsto no CDC o correto (AgRg no AREsp 96.109/MG, Rel.  in., Luis Felipe Salomão, 4 T., Dje 29.09.2009).

Em 25 de maio de 2017, por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, no julgamento conjunto do Recurso Extraordinário (RE) 636331 e do RE com Agravo (ARE) 766618, que os conflitos que envolvem extravios de bagagem e prazos prescricionais ligados à relação de consumo em transporte aéreo internacional de passageiros devem ser  resolvidos pelas regras estabelecidas pelas convenções internacionais sobre a matéria, ratificadas pelo Brasil, inclusive com relação aos prazos prescricionais.

O prazo prescricional do CDC refere-se ao acidente de consumo. Assim, o STJ tem entendido que, nas outras situações que não envolvam acidente de consumo, o prazo prescricional será o disposto no Código Civil, de 1 ano. “Caracterizada a inexecução contratual, é ânuo o prazo prescricional para ação de cobrança do valor complementar de indenização securitária” (REsp nº 574.947/BA, Rel. Min. Nancy Andrighi, 2 T., Dj 28.06.2004).

A doutrina e a jurisprudência não têm unanimidade com relação à aplicação dos prazos prescricionais nas demais situações que envolvem as relações de consumo, já que o prazo de 5 anos, do art. 27, refere-se única e exclusivamente ao acidente de consumo. Desse modo, a discussão sobre a pretensão à reparação de danos decorrentes da violação de um contrato, para uns estaria sujeita ao prazo prescricional de três anos, previsto no art. 206, § 3º, V, para outros, estaria sujeito também ao prazo do art. 27, de cinco anos, ou, diversamente, se enquadraria na regra geral, que prevê o prazo prescricional de dez anos, nos termos do artigo 205 do Código Civil, ressalvadas, naturalmente, as hipóteses em que a Lei prevê prazo especial para determinadas espécies de contratos.

O Superior Tribunal de Justiça nos últimos anos, não teve unanimidade na apreciação do fato. A primeira decisão apareceu em 2006, concluindo pela aplicação do prazo de três anos também para a responsabilidade contratual. Já no ano de 2008, a matéria foi novamente submetida à apreciação do Egrégio Tribunal, que pela sua 2ª Seção, composta pela 3ª e 4ª Turma da Corte e responsável por julgar as questões de Direito Privado, decidiu que o prazo prescricional se enquadrava na regra geral e, portanto, era de dez anos, do art. 205 do C.C.

Nos anos seguintes, o mesmo Tribunal ora aplicou a prescrição trienal, ora aplicou a decenal. No primeiro semestre de 2016, houve mais dois acórdãos, ambos favoráveis à prescrição decenal. Nos últimos anos, houve uma prevalência da aplicação do prazo decenal, mas no final de 2016, no julgamento do REsp (1.281.594/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. j. 22.11.2016), o STJ acabou adotando novamente o prazo trienal. O Relator e os demais Ministros votantes reviram suas posições anteriores, para, então, afirmar que a “pretensão à reparação civil” indica não apenas a indenização por danos advindos de ilícitos absolutos, mas também a indenização devida em razão de danos provocados pelo inadimplemento contratual.

Nesse sentido, vale destacar o entendimento do STJ:

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC/1973. PRESCRIÇÃO. PRETENSÃO FUNDADA EM RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL. PRAZO TRIENAL. UNIFICAÇÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL PARA A REPARAÇÃO CIVIL ADVINDA DE RESPONSABILIDADE CONTRATUAL E EXTRACONTRATUAL. TERMO INICIAL. PRETENSÕES INDENIZATÓRIAS DECORRENTES DO MESMO FATO GERADOR: RESCISÃO UNILATERAL DO CONTRATO. DATA CONSIDERADA PARA FINS DE CONTAGEM DO LAPSO PRESCRICIONAL TRIENAL. RECURSO IMPROVIDO. 1. Decidida integralmente a lide posta em juízo, com expressa e coerente indicação dos fundamentos em que se firmou a formação do livre convencimento motivado, não se cogita violação do art. 535 do CPC/1973, ainda que rejeitados os embargos de declaração opostos. 2. O termo “reparação civil”, constante do art. 206, § 3º, V, do CC/2002, deve ser interpretado de maneira ampla, alcançando tanto a responsabilidade contratual (arts. 389 a 405) como a extracontratual (arts. 927 a 954), ainda que decorrente de dano exclusivamente moral (art. 186, parte final), e o abuso de direito (art. 187). Assim, a prescrição das pretensões dessa natureza originadas sob a égide do novo paradigma do Código Civil de 2002 deve observar o prazo comum de três anos. Ficam ressalvadas as pretensões cujos prazos prescricionais estão estabelecidos em disposições legais especiais. 3. Na V Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal e do Superior Tribunal de Justiça, realizada em novembro de 2011, foi editado o Enunciado n. 419, segundo o qual “o prazo prescricional de três anos para a pretensão de reparação civil aplica-se tanto à responsabilidade contratual quanto à responsabilidade extracontratual”. 4. Decorrendo todos os pedidos indenizatórios formulados na petição inicial da rescisão unilateral do contrato celebrado entre as partes, é da data desta rescisão que deve ser iniciada a contagem do prazo prescricional trienal. 5. Recurso especial improvido. (STJ – REsp 1.281.594/SP – Terceira Turma – Relator Min. Marco Aurélio Bellizze – j. 22.11.2016 – Dje 28.11.2016).

Esse também foi o entendimento adotado na V Jornada de Direito Civil, que deu origem ao Enunciado 419: “Art. 206, § 3º, V. O prazo prescricional de três anos para a pretensão de reparação civil aplica-se tanto à responsabilidade contratual quanto responsabilidade extracontratual.”.

Já com relação à prescrição das ações por repetição de indébito, o STJ editou a Súmula 412, que dispõe: “A ação de repetição de indébito de tarifas de água e esgoto sujeita-se ao prazo prescricional estabelecido no Código Civil.”. Isto é, nessas ações, o prazo será o do art. 205 da lei civil, 10 anos. Todavia, outras discussões sobre repetição de indébito em outros tipos de serviços começaram a aparecer no Superior Tribunal de Justiça, como, por exemplo, nos serviços de telefonia.

De início, houve uma divergência entre os prazos na primeira e na segunda seção do STJ, a primeira seção tinha o entendimento de que o prazo era o decenal, de acordo com a Súmula 412 do STJ. Já a terceira turma tinha o entendimento de que o prazo seria o trienal, do art. 206, § 3º, V, ou até mesmo o inciso IV, que trata do enriquecimento ilícito. Pacificando o entendimento, o STJ No julgamento dos Embargos de Divergência, entendeu que nos serviços de telefonia, aplica-se analogicamente a Súmula 412, ou seja, o prazo prescricional será também de 10 anos.

Assim decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. SERVIÇO DE TELEFONIA. COBRANÇA DE VALORES INDEVIDOS. PRAZO PRESCRICIONAL PARA REPETIÇÃO DE INDÉBITO: DEZ ANOS (ART. 205 DO CÓDIGO CIVIL). SÚMULA N.º 412/ STJ. APLICAÇÃO ANALÓGICA. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA ACOLHIDOS. 1. Prescreve em dez anos (art. 205 do Código Civil) a pretensão de repetição de indébito relativa a valores indevidamente cobrados por serviço de telefonia. Aplicação analógica da solução conferida pelo Superior Tribunal de Justiça ao REsp, representativo de controvérsia, n.º 1.113.403/RJ. 2. Embargos de divergência acolhidos. (STJ – Corte Especial – Rel. Min. Laurita Vaz – EREsp 1515546 / RS – j. 18/05/2016 e DJe 15/06/2016)

Desse modo, a tendência é que o próprio STJ aplique o prazo decenal a todas as hipóteses de ações de repetição de indébito, não só aos serviços de água e esgoto ou telefonia.

Com relação à negativação indevida, o STJ tem tido o entendimento de que se aplica o prazo trienal do art. 206, § 3, V, do Código Civil (AgInt no REsp 1294478 / RS – Rel. Min. Luis Felipe Salomão – j 20/04/2017 e Dje de DJe 03/05/2017).

No que diz respeito aos planos de saúde, a Segunda Seção do STJ, na sessão de 10 de agosto de 2016, concluindo o julgamento de recursos especiais repetitivos (REsps nºs 1.361.182/RS e 1.360.969/RS), firmou a tese de que, na vigência dos contratos de plano ou de seguro de assistência à saúde, a pretensão condenatória decorrente da declaração de nulidade de cláusula de reajuste nele prevista prescreve em 20 anos (art. 177 do CC/1916) ou em 3 anos (art. 206, § 3º, IV, do CC/2002).

O Superior Tribunal de Justiça também entendeu pela incidência da prescrição trienal sob a pretensão de restituição de valores pagos a título de comissão de corretagem ou serviço de assistência técnico-imobiliária pagos indevidamente no julgamento do REsp. 1.599.511/SP (REsp. 1.599.511 – SP – Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino – j. 24.08.2016).

A doutrina, nos termos da teoria do diálogo das fontes, entende que, com base no art. 7º, caput, do CDC, deve-se aplicar a lei mais vantajosa ao consumidor, com relação aos prazos prescricionais ou decadenciais, isto é, a possibilidade de mistura de regimes legais para conferir maior proteção ao consumidor.


BIBLIOGRAFIA

AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a Prescrição da Decadência e para identificar as ações imprescritíveis, RT, 300:7, out.1960, reproduzido na RT, 711:725-6, out. 1997.

OLIVEIRA, Júlio Moraes. Curso de direito do consumidor completo. 4 ed. Revista, Atualizada e Ampliada. Belo Horizonte: D’Plácido Editora, 2017. p. 227.

NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor.4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.


NOTAS

[1] AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a Prescrição da Decadência e para identificar as ações imprescritíveis, RT, 300:7, out.1960, reproduzido na RT, 711:725-6, out. 1997

[2] OLIVEIRA, Júlio Moraes. Curso de direito do consumidor completo. 4 ed. Revista, Atualizada e Ampliada. Belo Horizonte: D’Plácido Editora, 2017. p. 227.

[3] NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor. p. 368.


Autor Júlio Moraes Oliveira

Mestre em Instituições Sociais, Direito e Democracia pela Universidade FUMEC (2011), Especialista em Advocacia Civil pela Escola de Pós-Graduação em Economia e Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas EPGE/FGV e EBAPE/FGV. Autor dos Livros: CURSO DE DIREITO DO CONSUMIDOR COMPLETO, 4ª edição e CONSUMIDOR-EMPRESÁRIO: a defesa do finalismo mitigado. Advogado, com experiência em contencioso e consultivo, em direito civil, consumidor, empresarial e trabalhista. juliomoliveira@hotmail.com

Fonte:www.jus.com.br

Foto: pixabay

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