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Delação Premiada no Processo Penal Acusatório

O processo penal brasileiro evoluiu de uma concepção inquisitiva para um modelo acusatório, de feição dialética e recorte democrático, onde acusador e réu figuram como “partes” com direitos e ônus processuais. O réu, de mero objeto do processo, torna-se sujeito da relação jurídica processual, titular de direitos e garantias.

A instrução probatória, nesta concepção, realiza-se com a participação dos agentes e propõe regras positivas sobre a iniciativa das partes, ônus da prova ao encargo do acusador, contraditório, limitação a atuação ex officio do magistrado, etc.

No sistema acusatório é inadmissível a inserção de provas sem o crivo do contraditório e da ampla defesa. Também não se admite a utilização de presunções, além daquelas deferidas pela Constituição Federal, como a presunção de não culpabilidade (ou de inocência) garantia fundamental a convalidar a lógica probatória em matéria criminal. Isso porque, via de regra, uma presunção não é resultado de processo lógico, mas de afirmação subjetiva, intuitiva, fruto de uma valoração antecipada baseada em um juízo de semelhança (Malatesta) altamente sugestionável pelos ambientes e circunstâncias socioculturais e sujeitas a distorções perceptivas.

Nesse contexto, a lei 12.850/13, precedida pela lei a lei 9.807/99, regulamenta e confere aplicabilidade ao instituto da colaboração premiada, situação jurídica processual em que um suposto partícipe em crimes valorados como típicos de organização criminosa, propõe um “acordo de delação” com os órgãos persecutórios, indicando eventuais coautores e fornecendo elementos que possibilitem a condenação criminal de terceiros envolvidos, em troca de benefícios penais ou até mesmo do perdão judicial.

A doutrina aponta seu nascedouro no sistema processual norte- americano, cujo formato, de acentuado pragmatismo, favoreceu o emprego do plea bargain, um acordo entre promotoria e acusado em que este confessa a autoria ou a participação no crime e indica evidências de outros envolvidos. Tal acordo de delação abrandaria a severidade penal no caso de condenação.

Inserida no direito pátrio por meio da lei 9.807/99 e regulamentada a partir da edição da lei 12.850/2013, o instituto volta a suscitar importante problemática a ser debatida, principalmente por sua ampla adoção como meio principal de investigação para certas categorias delitivas.

A referida lei define os limites normativos do conceito de organização criminosa e estabelece procedimentos para obtenção de provas, dentre as quais o acordo de delação. Como meio de obtenção da prova criminal, é importante a compreensão de que a colaboração premiada não é uma prova em si mesma, mas um meio de prova, indicada para possibilitar a obtenção de evidências comprobatórias do fato investigado. A sua valoração é aferida em razão dos resultados que propicia em termos de persecução criminal. Dado relevante, que não pode escapar à percepção do intérprete e do aplicador do direito, é o fato de a delação corresponder a uma classe de provas essencialmente subjetiva, tratando-se, realisticamente, de uma confissão de culpabilidade, seguida de uma delação, ou seja, denúncia, chamada de corréu, em que o denunciante o faz na qualidade de réu confesso.

Embora a admissão de culpa se apresente como um objetivo a ser alcançado por meio da persecução penal, enquanto resultado de uma persuasão em face das evidências do crime, em que os elementos de prova “convencem” o réu de sua própria culpabilidade e o persuade a admiti-la, a doutrina destaca na história da dogmática do processo penal as reservas e as desconfianças que a confissão sempre despertou no jurista. Mittermaier, no século XIX, asseverava que “o povo nutre a respeito desta prova opiniões muito notáveis; nunca se convence melhor da culpabilidade de um acusado do que quando sabe que fizera este uma confissão completa. Porém toda a confissão, qualquer que seja em si, e qualquer que seja a sua forma, não convencem a princípio de sua sinceridade; para ter este poder, é preciso reunir-lhe certas condições” (MITTERMAIER, C. J. A. Tratado da Prova em Matéria Criminal, 1948. Editora Bookseller, São Paulo, 1997, pagina 185.)[1]

Em nossos dias, há consenso na doutrina quanto à natureza jurídica da confissão, por se tratar de um dos instrumentos disponíveis para o julgador alcançar a verdade processual. Guilherme de Souza Nucci destaca ser a confissão um inegável meio de prova. Por ser uma declaração a respeito dos fatos debatidos no processo, não deixa de ser um testemunho, prestado, no entanto, pelo próprio acusado, que é o maior interessado no deslinde da causa (NUCCI, Guilherme de Souza. O Valor da Confissão como Meio de Prova no Processo Penal. RT. São Paulo. 1997, p. 81).

É possível concluir dedutivamente que a delação pura e simples tem qualidade de prova testemunhal especial e de natureza complexa, pois além de conferir e fortalecer juízo de probabilidade inculpatória em face do réu que confessa sua vinculação ao delito, invoca também a culpabilidade de outros prováveis coautores. Nesta segunda qualidade, a prova advinda da delação deve ser considerada essencialmente testemunhal e assim valorada.

Em síntese, no enfrentamento do mérito acusatório, o magistrado acercar-se-á de cuidados para que o elemento constituído não vulnere o sistema acusatório ou impossibilite o pleno exercício do direito de defesa na constituição da prova penal, pois, caso seja admitida a delação como prova de per si, valorada aprioristicamente pelo juiz instrutor, inclusive com efeitos processuais imediatos em benefício do delator, o efeito seria a anulação das possibilidades defensivas dos réus delatados.

Em outros termos, a admissão absoluta da prova obtida por meio da delação, sem o filtro da legalidade estrita e da lógica formal, produziria uma dialética processual desequilibrada, impondo uma desvantagem formal e material à defesa, além de uma presunção de culpabilidade absolutamente ofensiva à Constituição Federal.

Ressaltamos, pois, a necessidade de que os magistrados, no manejo dos dispositivos regentes da delação premiada, empreguem uma interpretação restritiva da lei 12.850/13, ancorada no princípio da estrita legalidade, onde não há espaço para analogia e hermenêutica extensiva do sentido da norma. Dessa forma, ganha a ciência processual penal no aprimoramento do sistema acusatório, o mais condizente com o Estado Constitucional de Direito.

Fabrizio Jacynto Lara
Advogado criminalista, sócio do escritório Alcoforado Advogados Associados S/C e professor universitário.

CORREIO BRAZILIENSE

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