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Os tribunais e a roupa suja da vida privada

Traições, abandonos, sexo não convencional%u2026 Cada vez mais, o Poder Judiciário é chamado para resolver delicados imbróglios das relações pessoais. O que acontece entre quatro paredes, quando não dá certo, acaba exposto nos julgamentos e nas sentenças

RENATA MARIZ

Ambiente, trajes e vocabulário ainda carregam o protocolo típico doJudiciário. Os problemas levados aos tribunais, nem tanto. Imbróglios da vida privada — por que não dizer, das relações mais íntimas das pessoas — têm sido frequentemente discutidos diante do juiz. Do pedido de reparação financeira por uma traição amorosa de décadas à denúncia de abuso em um episódio de sexo grupal, as demandas chamam a atenção dos leigos pelo teor inusitado e, às vezes, até cômico, mas dividem a opinião de especialistas. Falta de capacidade para lidar com os próprios problemas e uma indústria da indenização seriam as responsáveis pela judicialização da vida privada, apontam os críticos.

Integrante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Deborah Ciocci rebate quem critica esse tipo de judicialização. Segundo ela, as pessoas devem procurar os tribunais, mesmo em problemas decorrentes da vida afetiva ou sexual, quando acharem que tiveram um direito violado e que não conseguirão resolver a questão extrajudicialmente. “O que, aos olhos dos outros, pode parecer algo sem importância, às vezes é fundamental para quem reclama. A função do juiz moderno é valorizar cada caso como importante, para, dessa forma, garantir o acesso à Justiça”, diz. “Se houver abuso ou inconsistência no pedido, resolve-se na sentença.”

Para Rodrigo da Cunha Pereira, presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), há um excesso na busca pela Justiça. “Vai contra a tendência de o Estado interferir cada vez menos na vida privada das pessoas. Vem daí a ideia de se criar câmaras de conciliação para tentar resolver problemas como esses”, destaca. Paulo Castelo, advogado com 40 anos de atuação em Brasília, considera salutar que oJudiciário esteja mais próximo das pessoas, mas alerta para o oportunismo em nome do dano moral. “Vejo o risco de se estar criando uma fábrica de indenizações, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos.”

Um “pequeno” problema
As juras de amor eterno não passaram da noite de núpcias. Depois de cerca de dois anos de namoro e noivado sem relações sexuais, veio a grande noite. Foi quando a mulher descobriu a “insignificância peniana” do então marido, com quem viveu por 11 meses. Acusando-o de ter omitido a informação sobre o tamanho do “problema” sob falsa justificativa de motivos religiosos, a mulher acionou a Justiça pedindo R$ 200 mil por danos morais, no Amapá.

Além disso, ela requereu a anulação do casamento por erro essencial sobre a pessoa — razão prevista na legislação para pôr um fim a um negócio jurídico. “Ela pode ter sido enganada, de fato, mas, em pleno século 21, será que podemos falar em erro sobre a pessoa? Ou seria o famoso ‘me engana que eu deixo’?”, questiona Rodrigo da Cunha Pereira, do IBDFam. Como o caso corre em segredo de Justiça, o tribunal não informou se já houve julgamento.

Ménage mal-resolvido
Um caso de sexo entre três pessoas chegou ao Tribunal de Justiça de Goiás em 2004. Um homem acompanhado da própria mulher teria convidado um colega para o conhecido ménage à trois (expressão em francês que significa relação sexual a três). Esse colega, entretanto, acusou-o de violência sexual. O Tribunal de Justiça de Goiás, acompanhando a decisão de primeiro grau, absolveu o acusado. E ainda passou uma lição de moral no homem que se dizia vítima.

“Quem procura satisfazer a volúpia sua ou de outrem, aderindo ao desregramento de um bacanal, submete-se conscientemente a desempenhar o papel de sujeito ativo ou passivo”, diz a sentença, publicada no site do tribunal. E conclui: “Se o indivíduo, de forma voluntária e espontânea, participa de orgia promovida por amigos seus, não pode ao final do contubérnio (convívio, intimidade) dizer-se vítima de atentado violento ao pudor.”

Pulada de cerca
Um casamento de 34 anos terminou porque a mulher descobriu que, ao longo de 24 anos, foi traída. Da relação extraconjugal do marido nasceu, inclusive, uma filha. Valor da honra, imagem, integridade psíquisa, tristeza e sofrimento causados: R$ 200 mil. Essa foi a quantia pleiteada como indenização por danos morais. O caso chegou ao Tribunal de Justiçado Distrito Federal no ano passado.

Nesse processo, discutiu-se a violação da fidelidade, uma das obrigações do casamento previstas em lei. O ex-marido se defendeu, levando ao juiz as chantagens emocionais feitas pela mulher e outras questões que, segundo a defesa dele, o fizeram manter a vida dupla por tanto tempo. O processo é uma uma verdadeira lavagem de roupa suja. Ao fim, o adúltero viu que trair tem preço. Em decisão unânime da 6ª Turma Cível do tribunal, o direito à reparação foi reconhecido, mas a indenização foi reduzida para R$ 25 mil.

Abandonada no altar
Meia hora antes do casamento, com os convidados na igreja, a mãe do noivo avisa: “ele não vem mais”. Poderia ser uma cena de novela, mas aconteceu em Planaltina, a 40km do Plano Piloto. Pelo constrangimento público, dor, vergonha e sofrimento, a noiva pediu, na Justiça, 200 salários mínimos de indenização além do ressarcimento dos gastos que teve com os preparativos da festança.

A decisão do juiz de primeira instância — que condenou o réu ao pagamento dos prejuízos materiais mais 50 salários mínimos por danos morais — foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal. O noivo chegou a alegar que não tinha a intenção de romper, apenas adiar a cerimônia, devido a problemas psicológicos, mas o argumento não foi suficiente para livrá-lo da condenação.

Amores frustrados, adultérios… e indenização

Casamento de três anos desfeito de forma consensual. Guarda do filho e pensão alimentícia resolvidas, o ex-marido foi morar na Áustria, transferido pela empresa em que trabalhava. Cinco anos depois, em 1994, soube que não era o pai do menino que ele supunha ser seu filho, informação confirmada por exame de DNA. Para piorar a situação, o verdadeiro pai biológico era um amigo que convivia socialmente com o casal no passado. O traído entrou com ação por danos materiais (em relação aos gastos com o falso descendente) e morais contra os traidores. Os conflitos surgidos do triângulo amoroso, ocorrido em São Paulo, foram julgados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) neste ano.

A Corte manteve a condenação apenas pelos danos morais causados pela mulher, absolvendo o pai verdadeiro da criança, mas diminuiu o valor arbitrado pelo Tribunal de Justiça paulista — de mil salários mínimos (R$ 678 mil, em valores atuais) para R$ 200 mil. Ao decidir pela redução da indenização, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, relator do processo, teceu o seguinte comentário a respeito das desilusões amorosas nos tribunais. “Deixar de amar o cônjuge ou companheiro é circunstância de cunho estritamente pessoal, não configurando o desamor, por si só, um ato ilícito, apto a ensejar indenização.” E relativizou a ligação entre a infidelidade e a obrigação de indenizar, que só deve ser aplicada caso tenha havido de fato o dano. “Não há como se impor o dever de amar, verdadeiro obstáculo à liberdade de escolha pessoal”, diz.

A jurista Maria Berenice Dias, na obra Manual de direito das famílias, destaca que “a busca de indenização por dano moral transformou-se na panaceia para todos os males”. Ela cita João Baptista Vilella, famoso jurista, para quem o amor está para o direito de família assim como o acordo está para o direito dos contratos, concluindo que, “sob esses aspectos, está se querendo transformar a desilusão pelo fim dos vínculos afetivos em obrigação indenizatória”. (RM)

 

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