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Doentes vão à Justiça por um fígado

Três pacientes conseguiram acesso à fila de transplante, organizada pela gravidade dos casos; situação é inédita'

 
 
Pacientes que aguardam um transplante de fígado estão recorrendo à Justiça para ter direito ao órgão sem respeitar a lista de espera definida pelo Ministério da Saúde. O fato é inédito no sistema atual de organização da fila, que desde 2006 leva em conta a gravidade do estado de saúde e pretendia também reduzir conflitos. Antes da alteração, a lista seguia a ordem cronológica de inscrição do paciente e era comum doentes graves recorrerem ao Judiciário para não morrerem esperando.
Mário, Welligtânia e Khefren, beneficiados por ordens judiciais, são pacientes de um mesmo especialista de Pernambuco e foram transplantados sem alarde em 2008 depois que a Justiça aceitou o argumento de que suas doenças, também graves, não foram acolhidas pela nova regra. A história dos três exemplifica um debate entre especialistas da área sobre a necessidade de aperfeiçoamento da regra e do risco de a Justiça interferir na fila, que até o primeiro semestre acumulava 4.770 pacientes, 3ª maior.
Para o presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos, Valter Duro Garcia, é hora de a comunidade de transplantadores de fígado buscar um consenso. “A pior situação é ter de trabalhar por meio de liminares, pois muitas vezes elas beneficiam só quem tem posse, conhecimento. É o sistema mais injusto”, declarou Garcia, que soube das decisões judiciais pela reportagem.
“O sistema atual é o melhor que existe. Temos é de aumentar as doações, e a comunidade sentar para discutir um consenso para as doenças não atendidas”, afirma o vice da entidade, Ben-Hur Ferraz-Neto.
Segundo levantamento do Ministério da Saúde feito a pedido do Estado, desde 2006 crescem os pedidos administrativos de equipes de transplantes à Câmara Técnica Nacional de Transplante de Fígado para que a pasta priorize pacientes graves e que não se encaixam nos critérios. Enquanto em 2006 só uma solicitação chegou à câmara, em 2007 foram 9 e no ano passado, 24. Em 2009, até novembro, 39 requisições chegaram ao ministério.
No meio do total de 73 pedidos estavam os dos três pacientes que receberam negativas e foram à Justiça. Foram indeferidos 33 pedidos e 40, deferidos.
Em razão do volume de casos, o governo alterou em outubro a legislação de transplantes para permitir a descentralização da análise dos pedidos, até ali concentrados em Brasília. Também inseriu regras para os casos mais solicitados (mais informações nesta página).
Hoje, a posição de cada paciente na fila é definida com base no resultado de um modelo matemático, o Meld (sigla para Model for End-Stage Liver Disease), que leva em conta resultados de três exames laboratoriais que expressam como estão determinadas funções do fígado. Para estar na lista, o doente deve ter pontuação de 6 a 40. Também existem situações especiais, como determinados tipos de câncer de fígado, que acrescentam pontos ao resultado, garantindo mais chance de transplante.
CONSENSO E CRÍTICA
Há consenso de que o Meld é muito melhor do que a ordem cronológica, apesar de no passado a substituição ter causado grande polêmica. Na antiga metodologia, pacientes eram inscritos desnecessariamente na fila, para “garantir lugar”. No entanto, algumas doenças que atacam o fígado e afetam gravemente a saúde não alteram os resultados dos exames considerados na fórmula, o que faz com que os pacientes fiquem com um número baixo de Meld e com pouquíssimas chances de conseguir o novo órgão – caso de Mário e de Welligtânia. Há ainda situações raras que não foram acolhidas na legislação, como o de Khefren, portador de um tipo de câncer raro.
Segundo o professor titular de Cirurgia Abdominal da Universidade Federal de Pernambuco Claudio Moura Lacerda, médico dos três beneficiados, em geral os casos são de pacientes jovens, acometidos por doenças como a síndrome de Budd-Chiari, que causa obstrução de veias do fígado, ou colangite esclerosante, que destrói os canais condutores da bile. No entanto, até mesmo alguns casos de cirrose (formação de tecido fibroso e nódulos no fígado, quadros associados às hepatites e ao alcoolismo) com grave comprometimento da saúde podem não causar impacto no Meld, diz Lacerda.
“São doenças que não têm um elemento quantificador de sua veracidade (dentro do Meld). Os pacientes sofrem com sintomas como pruridos infernais, ascite (acúmulo de água na barriga), icterícia, encefalopatias (“intoxicação” do cérebro por substâncias que o fígado não consegue filtrar), perda de peso”, afirma Lacerda. “Com Meld baixo, as pessoas não chegam ao transplante, mas a doença é grave o suficiente para matar.”
Dos 17 casos de ascite refratária e colangite recebidos pela câmara técnica de Brasília, a maioria foi negada. “Na verdade, a regulamentação deixou esses casos pendentes”, afirma Luiz Carneiro D”Albuquerque, professor-titular da disciplina de Transplantes do Aparelho Digestivo da Faculdade de Medicina da USP.
Um estudo realizado pelo cirurgião Paulo Massarollo, da Santa Casa de São Paulo, apontou que, dos 554 doentes que morreram na fila de espera de São Paulo em 2008, a maioria tinha Meld 18 ou menor, números alcançados por pessoas que já manifestam ascite e encefalopatia. “Em razão das negativas da câmara técnica, as equipes nem fazem mais o pedido.”

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