A Folha obteve por via judicial as informações de cerca de 70 mil notas fiscais que foram objeto de reembolso aos deputados federais nos últimos quatro meses de 2008. É uma pequena amostra da caixa-preta que o
Congresso mantém desde 2001, quando foi criada a verba indenizatória, adicional mensal de R$ 15 mil para despesas de trabalho (o salário de um deputado é R$ 16,5 mil).
Nas duas últimas semanas, a Folha analisou cerca de 2.000 páginas entregues pela Câmara ao Supremo Tribunal Federal a partir de mandado de segurança e percorreu endereços em cinco Estados e no Distrito Federal para checar os dados.
Deparou-se com uma série de endereços fictícios e com empresas que são totalmente desconhecidas do mercado. Os deputados que usaram notas dessas empresas alegam que os serviços foram prestados e dizem que não podem responder por eventuais problemas delas.
Um deles, Marcio Junqueira (DEM-RR), recebeu pelo aluguel de carros reembolsos mensais de cerca de R$ 15 mil da PVC Multimarcas. A empresa é do advogado do parlamentar, Victor Korst, e tem como endereço o escritório deste.
Criada há pouco mais de um ano, a PVC emitiu ao deputado notas fiscais de numerações inferiores a dez, o que indica que Junqueira é possivelmente seu único cliente. “Se você for dar nota de tudo o que faz e pagar todos os impostos, você morre de fome”, justificou-se Korst.
Após abril deste ano, quando a Câmara passou a divulgar na internet os dados da verba, Junqueira deixou de pedir reembolso pelo serviço: “Acho que ele não teve ainda a felicidade de fazer com outros os contratos que fez comigo”.
[u]Endereços falsos
[b]Empresas “funcionam” em endereços fictícios
[/b]Rio Acima (MG), cidade com pouco mais de 8.000 habitantes a 41 km de Belo Horizonte, não tem aeroporto nem pista de pouso. Mas é lá que, no papel, fica a Global Express Serviços em Aviação Ltda, empresa de taxi aéreo que mais recebeu pagamentos da Câmara dos Deputados nos quatro últimos meses de 2008: R$ 96,2 mil.
No endereço registrado na Receita e na Junta Comercial moram o metalúrgico aposentado João Bosco das Neves, 54, sua mulher, filha e um cachorro que não para de latir ao menor sinal de estranhos. A casa é a mais mal conservada da vizinhança, com rebocos se descolando e tijolos à mostra.
Na nota que os deputados deram à Câmara, o endereço é descrito como Rua do Rosário, 131, “sala 02”, sugerindo um imóvel comercial. O telefone é de uma empresa homônima, que faz manutenção de aparelhos eletrônicos em Belo Horizonte. Lá, um funcionário disse que a “Global Aviação fica em outro lugar, em Rio Acima”.
Na cidade do interior mineiro, João Bosco afirma que a empresa nunca funcionou ali. Sua mulher afirma que “presta serviços” para a Global. Diz ganhar R$ 20 por mês para receber as correspondências e “mandar e-mails”: “O que eu sei é que eles fazem palestras para o pessoal da aviação. Não sabia que tinha negócio de deputado no meio”.
A empresa não tem autorização da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) para explorar o transporte de passageiros. O dono da Global, Leonardo de Vasconcelos Vieira, 34, nega que a empresa seja fantasma.
Segundo ele, o endereço em Rio Acima foi indicado pela prefeitura local para fugir dos valores de ISS cobrados em Belo Horizonte, onde, segundo ele, a empresa efetivamente funciona.
Segundo Leonardo, a Global não tem aviões e não faz táxi aéreo: “Nós fazemos subfrete, é como um mercado paralelo para fugir de custos mais altos”. Na prática, diz ele, a empresa é uma intermediária entre eventuais clientes, como deputados, e empresários que possuem aviões disponíveis. Sem site ou qualquer outro tipo de divulgação, diz funcionar na base da “indicação” e da “confiança”.
Firmas que emitiram notas fiscais para os deputados cearenses José Airton Cirilo (PT) e Eugênio Rabelo (PP) também informaram em seus cadastros fiscais endereços inexistentes.
A Locautos Campo Verde, que emitiu notas para Rabelo, deveria estar localizada na Estrada do Largão, s/n, em Eusébio (a 27 km de Fortaleza). No local, rebatizado de rua Benedito Ferreira, os moradores nunca ouviram falar dela: “Locadora de carros nunca teve aqui”, disse o comerciante João Ribeiro, 54, que mora ali há 17 anos. Na rua, sem asfalto, só há casas e terrenos baldios.
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São muitos os casos de empresas que não existem nos endereços informados à Receita, situação que pode configurar crimes como falsidade ideológica e contra a ordem tributária (dois a cinco anos de prisão).
Os deputados baianos Severiano Alves (PMDB) e Uldurico Pinto (PHS) entregaram uma série de notas da Valente & Bueno Assessoria Empresarial, que informou à Receita funcionar num apartamento na Asa Sul de Brasília. O dono do imóvel nunca ouviu falar da firma.
No período analisado, a Valente & Bueno teria recebido R$ 56 mil dos dois deputados, mas, segundo eles, os pagamentos remontam a 2006, o que elevaria o valor a pelo menos R$ 350 mil se o padrão de pagamentos for constante. Severiano e Uldurico disseram que os serviços foram prestados, mas não souberam detalhá-los.
Severiano falou que a assessoria era “consultoria de mídia, principalmente” e que interrompeu os trabalhos em abril porque a Câmara teria proibido a contratação de consultorias, o que não é verdade. Uldurico disse não se lembrar exatamente o que solicitou -foram “trabalhos jurídicos, específicos”.