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Flexbilização da coisa julgada

A doutrina conceitua a coisa julgada como a imutabilidade da sentença e seus efeitos, indispensável à estabilidade e segurança jurídica das relações.

A doutrina conceitua a coisa julgada como a imutabilidade da sentença e seus efeitos, indispensável à estabilidade e segurança jurídica das relações. Dada a essa importância social, vem consagrada no artigo 5º , XXXVI da Constituição Federal e disciplinada pelos artigos 467 e seguintes do Código de Processo Civil.
A questão posta em discussão e que atormenta a doutrina e a jurisprudência é saber se os efeitos da sentença estariam indefinidamente projetados para o futuro, de forma absoluta, ou se, em dadas circunstâncias, seria possível relativizar a coisa julgada em prol de outros princípios constitucionais. A segunda afirmação há de prevalecer.
Há situações, sem dúvida, em que é permitido ao julgador, diante de afronta a outro princípio fundamental do direito, como o da vedação ao enriquecimento sem causa, rediscutir a matéria objeto da coisa julgada e relativizar os seus efeitos. A título de ilustração, cita-se o caso prático em que o autor da ação confessa, apenas na fase de cumprimento de sentença, ter cometido fraude contra a seguradora para obter, a título de indenização, o valor constante na apólice. Seria justo, legal, lícito e razoável compelir a seguradora, por sentença transitada em julgado, a efetuar o pagamento do valor da indenização a um criminoso confesso? Em homenagem à estabilidade e segurança das relações jurídicas, seria prudente o autor obter lucros do seu próprio crime? É lógico que não.
Os efeitos da coisa julgada não podem ser absolutos. Há certos valores consagrados constitucionalmente que devem prevalecer, tais como o da Justiça e legitimidade das decisões. Sobre o tema, a doutrina de Cândido Rangel Dinamarco ensina com propriedade que não é lícito entrincheirar-se comodamente detrás da barreira da coisa julgada e, em nome desta, sistematicamente assegurar a eternização de injustiças, de absurdos, de fraudes ou de inconstitucionalidades. Das lições do ministro José Delgado discorrendo acerca dos efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais extraem-se que a coisa julgada é uma entidade definida e regrada pelo direito formal, via instrumental, que não pode se sobrepor aos princípios da legalidade, da moralidade, da realidade dos fatos, das condições impostas pela natureza ao homem e às regras postas na Constituição, devendo a segurança jurídica imposta pela coisa julgada imperar quando o ato que a gerou, a expressão sentencial, não esteja contaminada por desvios graves que afrontem o ideal de Justiça.
Como se observa, a sentença injusta, imoral, indecente, viciada por erros graves que afrontam o ideal de Justiça e transformam a realidade dos fatos, mesmo transitada em julgado, jamais poderá sobrepor aos princípios de maior hierarquia esculpidos na Constituição Federal, como o da Justiça, legalidade, moralidade, razoabilidade e de vedação ao enriquecimento ilícito.
A jurisprudência brasileira não destoa desse posicionamento e vem relativizando os efeitos da coisa julgada em situações de manifesta injustiça: A teoria da relativização da coisa julgada, que autoriza a rediscussão de matéria objeto de coisa julgada, tem aplicação somente em casos excepcionalíssimos, de extrema injustiça, ou em casos de grave fraude processual ou erro grosseiro, de forma a manter a estabilidade jurídica, enquanto garantia processual constitucional, (Ap n. 2.0000.00.516151-9/000 — 14ª Câmara Cível — Relator: Des. Elias Camilo — 16/03/2006, Tribunal de Justiça de Minas Gerais).
A impugnação ao cumprimento da sentença não é, via de regra, dotada de eficácia suspensiva, salvo nas hipóteses expressas no artigo 475-M, quais sejam, relevância dos fundamentos da impugnação e risco de o prosseguimento da execução ensejar ao executado grave dano de difícil ou incerta reparação. Hipótese em que ambos os requisitos se fazem presentes ante a existência de fortes indícios de fraude no pagamento do seguro obrigatório, que ocorreria em dobro. Hipótese que a priori justifica a aplicação da teoria da relativização da coisa julgada. Recurso provido (2007.002.02004-Agravo de Instrumento, Des. Carlos Eduardo Passos — Julgamento: 07/03/2007 — Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro).
O Superior Tribunal de Justiça tratando da matéria no julgamento do REsp 622.405/SP, de relatoria da ministra Denise Arruda, foi enfático ao se manifestar no sentido de que a coisa julgada, enquanto fenômeno decorrente de princípio ligado ao Estado democrático de direito, convive com outros princípios fundamentais igualmente pertinentes. Ademais, como todos os atos oriundos do Estado, também a coisa julgada se formará se presentes pressupostos legalmente estabelecidos. Ausentes estes, de duas, uma: (a) ou a decisão não ficará acobertada pela coisa julgada, ou (b) embora suscetível de ser atingida pela coisa julgada, a decisão poderá, ainda assim, ser revista pelo próprio Estado, desde que presentes motivos preestabelecidos na norma jurídica, adequadamente interpretada.
Em vários julgados, o STJ tem admitido a desconstituição da coisa julgada como nos casos de superestimação do valor da justa indenização nos processos de desapropriação indireta, na ocorrência de erros de cálculos, nas ações de Estado em que não foi excluída expressamente a paternidade do investigado na ação de investigação de paternidade, diante da precariedade da prova, e considerando que, quando do ajuizamento da primeira ação, o exame de DNA ainda não era disponível, entre outros. E tal desconstituição tem sido perseguida sem um rigor excessivo, até mesmo mediante simples alegações incidentes no processo executivo.
Cumpre afirmar que a segurança jurídica é fundamental para o Estado Democrático de Direito, porém, quando eivada de vícios graves, jamais poderá se sobrepor aos pilares da moralidade, legalidade e Justiça que sustentam o regime democrático. Portanto, o instituto da coisa julgada e a garantia de segurança jurídica das relações jurídicas não se mostram absolutos no ordenamento jurídico, pois convivem lado a lado com outros princípios e valores constitucionais, que é o da justiça das decisões judiciais.

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