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É assim que eu penso e, porque penso assim, na condição de magistrado, o digo!

Não são poucas as perlengas existentes entre o Poder Judiciário e o jornalismo. Não raro, o jornalismo, a pretexto de vender mais, faz uso de textos sensacionalistas os quais, por vezes, afetam os ditames jurídicos pátrios.

Emblemático é o caso da Escola Base em que o jornalismo sensacionalista “processou, julgou e condenou” um casal de senhores – donos de uma escola – de crime que, se quer, ocorrera.

O aludido “leading case” – a exemplo de muitos outros – não alterou, substancialmente, a forma de se fazer jornalismo, afinal permanece havendo a “ sentença” jornalística.

O temor dos operadores do direito é que a “sentença” jornalística fere a imagem do suposto culpado e, ainda que a Justiça o absolva, perante a opinião pública, aquela cidadão será, para sempre, “o culpado”. À semelhança dos “tribunais” medievais.

Não é por outra razão, que Justiça hodierna se faz percorrendo um iter lógico de análise – o alcunhado “Devido Processo Legal” – consoante o disposto no artigo 5º, LV, CF.

Entretanto – desta vez – a lesão à imagem, a ofensa e o despropósito não veio da Imprensa jornalística. O despautério emergiu de nossos Tribunais. E, ao contrário, o conhecimento da barbárie perpetrada se fez mediante a atuação da imprensa, que divulgou, amplamente, sua ocorrência.

O Poder Judiciário, como o próprio nome sugere – juris dictium – possui como atribuição dizer o direito, com caráter de definitividade.

Assim sendo, o jurisdicionado submete à apreciação daquele Poder, um conflito de interesses, marcado por uma pretensão resistida – a lide. E, após o exercício do contraditório – ou seja, da contraposição de teses – o juiz competente deve julgar ou, em outros termos, dizer o direito; sempre com respaldo na legislação pertinente.

Há, basicamente, dois sistemas legais: o civel law e a common law. O primeiro é pautado em codificações, em que a atuação do juiz se dá, estritamente, nos limites legais; ou seja, a lei confere ao juiz os parâmetros para julgamento. O juiz possui livre convencimento, mas deverá motivá-lo, com base na lei, nos princípios do direito e na jurisprudência – reunião de decisões judiciais, no mesmo sentido. Já o sistema da common law, possui outra tradição. Trata-se de um sistema em que o juiz da causa não possui parâmetros rígidos para proferir sua decisão. Motivo pelo qual, sua decisão possui um grande espectro de subjetividade. Tal amplitude de subjetividade é defeso no sistema da civel law. E, justamente, nisto reside a segurança deste sistema. Não permitir que a Justiça se faça ao crivo de subjetivismos de nossos magistrados.

Neste diapasão, a sentença proferida pelo juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho, juiz titular da 9ª Vara Criminal da Comarca da Capital, nos Autos da demanda proposta por Richarlyson, soa bisonha!

Não só pelo espantoso grau de preconceito nela contido – o que, agora, não vem ao caso – mas, sim, pelo fato de ignorar o mecanismo processual pátrio, por completo.

Aferir se uma Ação penal merece prosseguir ou não é análise formal, não material. Bastaria que o juiz da causa averiguasse a ocorrência de um crime – mera atuação de subsumir o fato descrito à norma vigente. As opiniões do douto magistrado, o seu amplo conhecimento futebolístico, suas aspirações sexuais são, absolutamente, irrelevantes para a análise do caso sub iudice. Principalmente, por não se tratar de análise de mérito. O juiz da causa entendeu que o fato exposto não reunia condições para engendrar uma ação penal. Aduzindo que, fatos como o descrito, deveria ter sido resolvido em um “Tète à Tète”.

Não há nenhuma norma que regulamente o “Tète à Tète”. Aliás, o sistema judiciário existe, justamente, para afastar a discussão entre pessoas. As partes são “substituídas” por advogados, os quais litigam discussão de teses; e a sua contraposição culmina na solução do litígio, por meio de sentença judicial. Note-se que não há, juridicamente, tète à tète.

A Lei estabelece que não comete crime aquele que age em defesa própria – Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem, consoante o disposto no artigo 25 do Código Penal – Decreto-lei n° 2.848/40. O tète à tète referenciado mais se aproxima deste conceito jurídico. Mas a lei não obriga ninguém a valer-se de seus próprios meios para dirimir a querela. A lei atribui a faculdade e o isenta de pena. Por exemplo, se o querelado retrucasse a ofensa, ter-se-ia uma atuação em legítima defesa, não cometeria crime, portanto. Todavia, o jogador não está obrigado, pela lei, a se expor publicamente em um “bate-boca”. A lei reconhece que o ato praticado é criminoso, logo, o querelante o submeteu à apreciação do Poder Judiciário.

Não obstante o juiz da causa, ainda, referendou o crime noticiado, aduzindo que o futebol não era palco para homossexualismo. Como se a lei, houvesse permitido tal discriminação.

Nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello, é próprio da lei realizar discriminações. Todavia elas, para serem admitidas e, portanto, não afrontarem a Constituição Federal, devem possuir um nexo lógico. Ou seja, deve haver um nexo de pertinência lógica entre a discriminação efetuada e o fator de discrímen. Por exemplo, não é atentatório ao regime jurídico pátrio a exigência de que no exército, seus integrantes tenham determinado peso e altura. As aludidas discriminações possuem nexo de pertinência lógica, na medida em que a discriminação efetuada visa a conferir maior eficiência ao contingente militar. Tal discriminação atende ao princípio da eficiência inculpido em Nossa Carta Magna, logo, é autorizada pelo sistema normativo pátrio.

O mesmo não se verifica nas razões do douto magistrado. Exceto por suas ponderações de cunho preconceituoso, não há qualquer fundamento racional ou ainda jurídico que justifique as discriminações entabuladas, tanto pelo diretor administrativo do Palmeiras, José Cyrillo Jr., como pelo Ilustre magistrado.

Não há qualquer dispositivo legal, qualquer princípio constitucional ou mesmo qualquer aparato jurisprudencial que autorize a discriminação entabulada, por um e por outro autor.

Em um país repleto de ignorantes, analfabetos e mal-informados, o futebol empresta grande importância e relevância. Este esporte pode trazer grandes lições ao nosso povo analfabeto. O episódio do jogador conhecido publicamente como “Grafite”, também são paulino, foi muito educativo. Precisamos relembrar ao nosso povo sofrido que alcunhas de “macaco”, “negrinho”, entre outros termos pejorativos, ofendem e merecem a repreensão da nossa Justiça. As bandeiras, os protestos e os hinos cantados nos jogos subseqüentes à ofensa ao jogador, de alguma maneira, educou os torcedores do seu time. O assunto cresceu em polêmicas, campanhas anti-racistas foram feitas e o povo engrandeceu. O futebol foi palco de educação cívica.

Futebol pode ser conversa de botequim. Futebol pode servir de aproximação pessoal em uma conversa que se inicia. Futebol pode aproximar casais e pode separá-los, também. Mas nunca, nunca mesmo, pode servir de pretexto para a manifestação racista ou preconceituosa de quem quer que seja.

A reforma da decisão prolatada e eventual repreensão ao juiz da causa, a ser determinada pelo CNJ, é o desfecho que se espera para este caso.

Afinal, preconceito é defeito de caráter, e não atividade jurisdicional. Se o juiz assim pensa e, porque pensa assim, o diz! que o faça no botequim, mas não na qualidade de magistrado, pois a investidura lhe proíbe de ser truculento, irracional e preconceituoso.

Catherine Vilela
Advogada em São Paulo