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Apuração de crimes praticados por índios.

APRESENTAÇÃO

Sociedade e comunidade indígena se chocam na disputa por direitos constitucionalmente relevantes para a vida em grupo. Sobre os interesses envolvidos, relevante é a segurança do cidadão, finalidade das polícias.

O número de indígenas em território nacional, segundo dados oficiais, é de 410.000 indivíduos – pelos cálculos de alguns são 800.000 -, que integram 230 povos e falam cerca de 180 línguas.

Segundo a FUNAI, apenas em Mato Grosso do Sul vivem 60.000 índios. Pelo noticiário, verificamos que a prefeitura de Dourados-MS, juntamente com órgãos estaduais e federais, vem proporcionando melhor qualidade de vida aos índios que habitam a Reserva Indígena de Dourados. As informações dão conta da implantação de programa habitacional, ampliação de escolas, atendimento no setor de saúde, instalação de redes de água e energia elétrica, construção de tanques para piscicultura, etc.

Por sua vez, Campo Grande-MS (capital) foi a primeira cidade do País a construir uma aldeia urbana para índios desaldeados, e a prefeitura vai viabilizar meios para a construção da segunda aldeia. Outra importante iniciativa foi o lançamento do jornal bilíngüe “Voz Terena”, elaborado pela comunidade indígena com o apoio da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), distribuído nas aldeias Terenas.

Apesar das ações citadas, com freqüência temos notícias dos crimes praticados por índios em suas relações com a sociedade não índia, ou mesmo em sua própria comunidade. Ocorre que essas áreas tornaram-se populosas, muito próximas do perímetro urbano de alguns municípios. Apresentam atualmente uso abusivo de álcool, consumo de substâncias entorpecentes, homicídios, furtos, suicídios, roubos e outros crimes.

Preocupados com a questão, vereadores e prefeitos de nove municípios da fronteira com o Paraguai (Antonio João, Aral Moreira, Ponta Porã, Amambai, Coronel Sapucaia, Paranhos, Sete Quedas, Iguatemi e Tacuru), se reuniram no “1º Encontro Micro-Regional de Municípios da Faixa de Fronteira”, ocorrido em 22/06/2007, promovido pela Câmara Municipal de Amambai. A classe política envolvida no encontro demonstrou a dimensão do problema e conhecimento de causa na área da segurança pública. Entenderam que só a união de forças pode pressionar o Ministério da Justiça e a FUNAI para assumirem suas responsabilidades na prevenção e repressão da violência nas aldeias da região. Para acompanhar a questão indígena e reprimir o crime, defenderam a instalação de uma delegacia da polícia federal em Amambai.

O que verificamos na realidade, é o atendimento das ocorrências pela polícia militar, e, dependendo do crime, a atuação dos peritos da polícia civil realizando os levantamentos do local de crime. Em seguida, em razão da facilidade de acesso ao socorro legal, a ocorrência é encaminhada para a delegacia de polícia da área. Após o registro do boletim de ocorrência, ou no curso do inquérito policial, dependendo da repercussão do caso, surgem então os conflitos de competência, seja entre as polícias judiciárias (civil e federal), seja de jurisdição (estadual e federal).
Apenas argumentando, os índios brasileiros se encontram em diferentes estágios em relação aos costumes da sociedade não índia. No Estado de Mato Grosso do Sul, todos trajam as vestes de nossa sociedade, nas terras indígenas (aldeias) têm acesso à rádio e televisão, trabalham nas fazendas, destilarias de álcool e nas cidades, e há índios com cursos universitários e pós-graduação.

A análise dos elementos citados anteriormente, nos leva ao ponto que deveria orientar a definição de responsabilidade do índio no evento criminoso. Para definir a imputabilidade penal do índio, deveríamos verificar se em conformidade com a sua cultura e seus costumes, o índio possuía ao tempo do fato, condições de entender o caráter ilícito previsto na lei. Ocorre, porém, que o debate não pode tomar esse caminho.

A CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Para dirimir a questão, devemos ter em vista a Constituição Federal de 1988, onde os índios receberam tratamento diferenciado, exigindo proteção especial aos seus direitos. O artigo 231 da Constituição reconheceu aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre terras que tradicionalmente ocupavam.

Cumpre destacar, a Constituição Federal superou antigas visões, onde os direitos indígenas limitavam-se na disputa pela posse da terra. Pela simples leitura de texto, sem qualquer exercício de interpretação da norma, verificamos a competência da União para “proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. A norma constitucional é clara, cabe à União preservar a cultura, as terras, e especialmente os direitos à vida e à liberdade.

O crime praticado por índio, ainda que contra outro índio, dentro ou fora da aldeia, contém uma conotação especial, pois sempre afeta a cultura, os costumes e a comunidade indígena, caso em que vislumbramos condutas violentas que provocam a instabilidade e afetam os interesses de toda a comunidade. A ocorrência de crimes em que figure indígena como vítima ou como autor põe em risco a cultura e a estrutura da comunidade inteira, cuja proteção é de interesse da União, o que atrai a competência da polícia federal. Esses crimes afetam gravemente a cultura, a organização social e a integridade da comunidade. Essas são circunstâncias especiais que fazem com que todo crime praticado por índio ou contra índio, constitua ofensa a direitos indígenas, que por força da Constituição Federal, devem ser protegidos pela União. Assim sendo, não há como deixar de reconhecer a competência da polícia judiciária da União.

Tomamos emprestada a pena de Wilson Matos da Silva, índio, advogado, pós-graduado em Direito Constitucional, que sustenta a competência da Justiça Federal para o julgamento de todos os casos que envolvem índios, cita a posição de Cláudio Lemos Fonteles: “é inquestionável que o art. 231 caput, da CF impõe à União o dever de preservar as populações indígenas, preservando, sem ordem de preferência, mas na realidade existencial o conjunto: sua cultura, sua terra, sua vida. Sua cultura, porque aos índios há reconhecimento constitucional de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições; sua vida, porque quer na expressão do indivíduo considerado de per si, quer na expressão da liderança ou das lideranças do grupo, quer na expressão do próprio grupo, porque a cada índio em particular e a todos, estende-se o dever de proteção constitucionalmente imposto a bens da União; proteger e fazer respeitar todos os seus bens, por obvio, não só os economicamente mensuráveis, mas os inestimáveis como a vida, e a integridade física” (Convenção sobre povos indígenas – OIT 169, publicado no Jornal O Progresso, 04/10/05, em sua coluna Opinião).

POLÍCIA FEDERAL E POLÍCIAS ESTADUAIS

Observamos que no âmbito federal foram instituídas as polícias da União, mas para a solução do caso em tela, nos interessa apenas a polícia federal. Conforme o artigo 144, § 1º, I da Constituição Federal, compete a policia federal a função de polícia judiciária da União, que tem por finalidade “apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo dispuser a lei”.

Cabe frisar, assume também a polícia federal as funções típicas de polícia administrativa, atividades voltadas para a prevenção do crime, ou seja, a função de polícia preventiva e ostensiva, que na sociedade não índia é competência da polícia militar.

Convém destacar, nos termos do inciso IV do § 1º do artigo 144 da Carta Magna, compete à polícia federal “exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União”, o que lhe impede de celebrar convênios com outras polícias para a execução de suas funções de polícia judiciária. O texto é claro. O legislador gravou as suas funções com exclusividade.

Em outro diploma legal, o Decreto 73.332/71, artigo 1º, inciso IV, alíneas “f” e “i”, também encontramos a competência da polícia federal para o caso, ou seja, para a prevenção e repressão de crimes contra a vida, o patrimônio e a comunidade indígena.

Por sua vez, as polícias estaduais também têm suas atribuições definidas no mesmo artigo 144. A polícia civil tem as funções de policia judiciária, incumbida de investigar crimes, exceto os militares e os de competência exclusiva da polícia federal. As funções de polícia administrativa, ou seja, policiamento ostensivo e preservação da ordem pública cabem a policia militar.

Ocorre que a polícia federal procura restringir a sua competência aos casos em que o crime é cometido contra a comunidade indígena. Apenas nesse caso identifica a disputa sobre direitos indígenas. Ora, não é este o preceito contido no artigo 231 da Constituição Federal, e sim aquele que impõe à União o dever de preservar as populações indígenas, preservando sem ordem de preferência, mas o conjunto, sua cultura, sua terra, sua vida. Os direitos indígenas dizem respeito à preservação das populações indígenas, são todos aqueles inerentes aos índios, dentre eles e especialmente o direito à vida.

Conforme o artigo 109 e seus incisos, a competência é da Justiça Federal para as causas nas quais a União figure na posição de autora, ré, assistente ou oponente, para os crimes praticados em detrimento de seus bens, serviços ou interesses, e para a disputa sobre direitos indígenas.

A condição de silvícola exige a aplicação da norma especial, bem como, conforme §§ 1º e 2º do art. 5º da Constituição Federal, dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, mormente quanto aos seus direitos e garantias individuais, hoje vigorando sob os efeitos da EM nº. 45, de 30/12/2004, art. 5º, § 3º, (Convenção 169/OIT).

A TUTELA

Convém frisar, existe, ainda, um poderoso argumento que certamente será usado conforme a conveniência. O índio não emancipado, indiciado em inquérito policial, deve ser assistido pela FUNAI na condição de tutora, conforme previsto na Lei N.º 6.001/73 (Estatuto do Índio), onde destacamos os artigos 9º e 10º:

“Art. 9º. Qualquer índio poderá requerer ao juízo competente a sua liberação do regime tutelar previsto nesta lei, investindo-se na plenitude da capacidade civil, desde que preencha os requisitos seguintes:

I – idade mínima de 21 anos;
II – conhecimento da língua portuguesa;
III – habilitação para o exercício de atividade útil, na comunhão nacional;
IV – razoável compreensão dos usos e costumes da comunhão nacional.

Parágrafo único. O juiz decidirá após instrução sumária, ouvidos o órgão de assistência ao índio e o Ministério Público, transcrita a sentença concessiva no registro civil.

Art. 10. Satisfeito os requisitos no artigo anterior, e a pedido escrito do interessado, o órgão de assistência poderá reconhecer ao índio, mediante declaração formal, a condição de integrado, cessando toda restrição à capacidade, desde que, homologado judicialmente o ato, seja inscrito no registro civil.”

Como observamos, somente através de uma sentença transitada em julgado poderemos afirmar a integração do índio à comunhão nacional. Não podemos prescindir da tutela no caso em questão. É imposição legal, e deve ser observada desde o indiciamento em inquérito policial, mesmo que o índio pareça integrado, capaz de entender o caráter criminoso do ato.

CONCLUSÃO

Demonstramos exaustivamente que a norma constitucional determina a tutela da União aos índios, e para cumprir esse mister, quando necessário for o concurso da polícia, competente é a polícia federal. Com a devida vênia, não entendemos como pode a autoridade policial federal, diante dos argumentos esposados acima, restringir sua ação através de pareceres e diretrizes, que na verdade pretendem interpretar a norma solapando preceitos constitucionais.

Por oportuno, lembremos dos constantes embates entre Fundação Nacional do Índio – FUNAI, Comitê de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas de Mato Grosso do Sul – CDDPI, Ministério Público Federal, Justiça Federal, entre outros órgãos, abordando o tema justiça e segurança pública, gerando um desgaste para todos perante a opinião pública.

Por fim, a nossa preocupação é com o volume de ocorrências envolvendo indígenas, fato verificado nas delegacias de polícia civil nos diversos municípios habitados por esses. Isso sobrecarrega o trabalho das polícias civil e militar, que deveriam atender apenas as ocorrências do cidadão não índio.

Fernando Paciello Junior, delegado de polícia civil.
Campo Grande – Mato Grosso do Sul.