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Homenagem a Santos-Dumont

Na ocasião em que se comemora o centenário do primeiro vôo do 14-bis (23 de outubro de 2006), gostaria de que vocês publicassem um texto ficcional que imaginei, para homenagear Santos-Dumont:

Guarujá, 23 de julho de 1932
Senhores confidentes,
O destino – valendo-se de seus caprichos imperscrutáveis – uniu-nos através desta singela missiva, a partir da qual compartilharei convosco alguns dos pensamentos que me acometeram ultimamente, nos instantes lúcidos que, com teimosia, insistiram em romper a apatia e a fraqueza as quais têm-me dominado.
Em troca de minha confidência, peço-vos que leiais atenciosamente todas as linhas desta correspondência, cujo conteúdo deve ser mantido em indevassável segredo, até que, no futuro, no momento em que achardes mais propício, esta carta seja revelada ao mundo, para que meus compatriotas – distantes temporalmente do calor dos acontecimentos – possam analisar a situação que vivencio, entendendo as razões de meus atos e julgando-me baseados em toda a minha história.
Confiante na vossa discrição e na vossa lealdade – atributos a que me resta apegar, embora sejais desconhecidos – inicio meu relato, adiantando esta premissa: as atitudes humanas são motivadas pelas circunstâncias que envolvem o espírito, embora, às vezes, pareçam incompreensíveis…
Costumo lacrimejar, ao recordar a emoção que senti, quando, pela primeira vez, em 1897, ascendi em um balão, aproximando-me da abóbada celeste e livrando-me das correntes que me prendiam a terra – através da força da gravidade.
Desde então, sofrendo de “aerite”, passei a concentrar as energias de que dispunha na busca do sonho que me fora despertado na infância – em decorrência da leitura da obra do imaginoso Júlio Verne – e para o qual me incentivara meu genitor, tanto em relação à sua admoestação de que o futuro repousava na mecânica, quanto no que se refere ao aspecto financeiro.
Não queria ser mais um inventor: os desafios que eu enfrentava não eram apenas meus, mas de toda a humanidade. Justamente a altivez dos objetivos que acossava – o que justificava a esmerada maneira de vestir-me, utilizando, inclusive, um elegante chapéu panamá – inspirou-me a perseverança necessária a que eu não desistisse diante das adversidades várias que enfrentei, sobretudo com meus balões de números 3, 4 e 5.
A dirigibilidade dos aeróstatos e os primeiros vôos públicos de aeronave mais pesada que o ar foram as recompensas de tantos esforços, contudo os respectivos prêmios não me pertenciam exclusivamente, por isso os reparti com a equipe que me auxiliava, ou os distribuí entre os pobres.
Outras invenções também são atribuídas a mim – dentre as quais, poderia mencionar a regulagem da temperatura quente/frio do chuveiro, o hangar e o simulador de vôo – mas não as patenteei. Nunca padeci de vaidade nem de cupidez. Sentia-me feliz e realizado por contribuir, ainda que de forma limitada, para o bem-estar de meus semelhantes.
Àquela época alegre, no entanto, sucedeu um período sombrio – em que ainda me encontro – iniciado pelo aparecimento dos sintomas de uma grave doença que, posteriormente, consumir-me-ia as forças: a esclerose múltipla.
Já com a saúde em declínio, durante a Primeira Guerra Mundial, fiquei encarcerado, por uma noite, em uma delegacia francesa, depois de me acusarem de ser um espião alemão. Logo em seguida, chegou-me a notícia de que o avião, naquele conflito, tornara-se arma responsável pela morte de centenas de milhares de pessoas, o que suscitou, no recôndito de minha alma, um insuportável sentimento de culpa. Resolvi, então, queimar meus arquivos.
Em 1924, refugiei-me em um sanatório da Suíça. O isolamento significou um alívio momentâneo. Quatro anos mais tarde, quando – próximo da barra do Rio de Janeiro, perto do barco em que eu vinha – um hidroavião batizado com meu nome e conduzindo uma comissão que me daria as boas-vindas tombou no mar, matando todos os passageiros, minha aflição recrudesceu.
Convencido de que a fatalidade me acompanhava, afetando aqueles com quem convivia, resolvi voltar para a Europa, de onde só regressei no ano passado, hospedando-me neste luxuoso hotel, aqui, em Guarujá.
Já não tenho uma motivação que me incite a permanecer dentre vós. Minha criação, conquanto tenha sido inspirada nos mais puros anseios, afastou-se do escopo original e deu ensejo à destruição daqueles que deveriam ser os beneficiários. Agravando meu sofrimento, nos últimos dias, tive conhecimento de que aviões federais serão usados para reprimir a Revolução Constitucionalista de São Paulo.
Sinto-me, enfim, preparado para o vôo mais importante da minha vida. Encarei-o em várias ocasiões da existência, mas precisei adiá-lo, para que pudesse realizar os ideais que me estimulavam. Doravante, nada mais resta a ser dito. Devo, por conseguinte, apressar-me.
Au revoir.
Santos=Dumont